São Paulo, domingo, 30 de Maio de 1999

Visões do futuro se mostraram equivocadas
neste século


CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília
O século 20 chega ao final e as previsões _utópicas e antiutópicas_ idealizadas por artistas e intelectuais sobre como estaria organizado o trabalho neste ponto da história não se realizaram.
As fantasias sobre a condição do trabalho no futuro imaginadas no início do século foram quase sempre sugeridas por Karl Marx.

Mesmo antimarxistas militantes, como George Orwell, no fundo partiam dos conceitos usados por Marx em seus escritos do século 19 para conceber o futuro.
A noção de "trabalho alienado" está no cerne de obras de arte que moldaram a imaginação coletiva sobre o trabalho neste século.
A desumanização, a reificação do operário, denunciada por Marx, aparecem com toda a clareza em "Tempos Modernos" (1936), filme de Charles Chaplin.

"TEMPOS MODERNOS"

Em 1936, Charles Chaplin leva a produção frenética da linha de montagem industrial ao cinema eretrata o operário tragado pelas maquinas da modernidade.

O início da fita, sobrepondo imagens de operários no caminho da fábrica à de um rebanho de carneiros no campo, não poderia ter sido exemplo mais ostensivo.
No filme, o anti-herói Carlitos é literalmente tragado pela máquina, triturado pela engrenagem.
Ele também é um símbolo da auto-alienação, outra idéia introduzida por Marx no debate acadêmico (em "Manuscritos Econômicos-Filosóficos", de 1844).
Carlitos, embora seja na prática agente da subversão ao sistema, está longe da consciência de classe que os marxistas tentavam construir. Ambíguo, oscilava entre integração e transgressão da ordem.

"1984"

Em 1949, o livro de George Orwell, levado ao cinema em 1955, prevê um futuro com trabalho alienado e controle total da vida da população

Dois romances de autores politicamente conservadores, Aldous Huxley e George Orwell, também se sustentaram nos princípios marxistas da alienação.
"Admirável Mundo Novo" (1932) e "1984" (1949), que tiveram enorme influência sobre o público ao longo do século, são extensões artísticas da hipótese de Marx, pela qual "se (o homem) se relaciona com o produto do seu trabalho (...) como um objeto alheio, inimigo, poderoso, então se relaciona com ele de maneira tal que um outro homem alheio a ele, inimigo, poderoso, independente dele, é o senhor deste objeto".
O "Grande Irmão", de "1984", podia ser uma alegoria de Joseph Stalin, o ditador soviético que Orwell odiava. Mas também era o senhor do trabalho alienado que o anti-herói Winston Smith fazia.
Em "Admirável Mundo Novo", ambientado no ano 632 DF (depois de Ford), o coletivismo e a passividade do trabalhador derivam do desenvolvimento deturpado da ciência e da tecnologia.
Tais cenários pessimistas sobre o futuro do trabalho eram consequência de três décadas extremamente dolorosas para o Ocidente, durante as quais enfrentou duas guerras mundiais, uma grande depressão econômica, o maior genocídio da história contemporânea e vários regimes totalitários.
Na medida em que essas previsões lúgubres não se materializavam e as condições objetivas de vida pareciam melhorar, ao menos nos países industrializados, a imaginação coletiva se desanuviou.
Os anos dourados da década de 50 e o aguçamento da Guerra Fria motivaram Hollywood a produzir filmes e séries de TV em que o "American Way of Life" era representado por famílias felizes lideradas por trabalhadores realizados em empregos recompensadores.

"ESCRITÓRIO EM UMA CIDADE PEQUENA"

Em 1953, com este quadro, Edward Hopper se une aos artistas que criticam a imagem do trabalhador feliz e bem-sucedido do "American Way of Life"

Claro que não deixaram de aparecer obras de arte críticas em relação ao presente e ao futuro do trabalho: das telas de Edward Hopper, retratando a solidão do escritório (como "Office in a Small City", 1953), à novela de Kurt Vonnegut sobre as consequências nefastas da excessiva substituição de homens por máquinas no trabalho manual ("Player Piano", 1952) e aos filmes sobre conflitos de classe produzidos na Europa e até nos EUA, apesar do macartismo (como "Salt of the Earth", de Herbert Biberman, 1953).

Mas a maioria das projeções sobre o futuro do trabalho feitas pelos controladores da cultura de massas do Ocidente nas décadas de 50 e 60 era mais otimista.
A linha era a de "Papai Sabe Tudo", "I Love Lucy", "A Feiticeira", "Jeannie é um Gênio" em que todos as ocupações (vendedor, artista, publicitário, astronauta) eram estimulantes, ou até mesmo "Hazel", a superempregada doméstica capaz de resolver qualquer problema da família a que servia.
"Os Jetsons", o desenho da dupla Hanna-Barbera, talvez tenha sido o mais rematado exemplo desse período róseo. As máquinas fariam todo o trabalho duro e aborrecido e os seres humanos, ainda que chateados pela quase completa inação, estariam bem.

"OS JETSONS"

Nos anos 60, a visão rósea da vida nos EUA chega ao futuro com a familia chefiada por George Jetson


Os choques econômicos provocados pela crise do petróleo nos anos 70, pela revolução conservadora na década de 80 e pela globalização na atual mostraram que as coisas não seriam tão simples.
A questão social voltou às telas na forma de reflexão sobre o passado ("Matewan, de John Sayles, 1987), preocupação com o presente ("Norma Rae", de Martin Ritt, 1979) ou, mais uma vez, temor sobre o que virá ("Blade Runner", de Ridley Scott, 1982/1991).
O receio do desemprego, os efeitos da concorrência econômica predatória internacional por indústrias e as disputas étnicas provocadas por ondas imigratórias nos países desenvolvidos têm sido representados no cinema, teatro, literatura e TV, ainda que sem o mesmo tom apocalíptico que caracterizou as décadas de 20 a 40.
Também aparece na representação cultural do trabalho neste final de século uma nostalgia dos anos 50, embora seja só idealização.
Talvez em consequência dela, a imagem das grandes corporações vai, aos poucos, mudando. Elas deixaram de ser demonizadas pelos trabalhadores, como haviam sido até pouco tempo.
Esse é um fenômeno que ocorre tanto nos centros do capitalismo quanto na sua periferia, ainda que por razões talvez diversas.
Nos EUA, empresas como Ford e General Motors passaram a ser vistas como uma espécie de modelo, um símbolo do passado em que os empregos eram estáveis e havia entre a fábrica e a comunidade uma espécie de compromisso.
Na América Latina, as multinacionais se tornaram um tipo de exemplo de correção e pragmatismo na relação com o funcionário.

 



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.