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Ela
quer dividir a tarefa doméstica ...
CHEGAR AOS
CARGOS DE LIDERANÇA E AMPLIAR ÁREAS DE ATUAÇÃO SÃO DESAFIOS DO SÉCULO
21
JOÃO
LEIVA FILHO
Editor-adjunto de Especiais
Após um final de milênio em que a mulher literalmente
invadiu o mercado, o século 21 reserva ainda mais desafios
para o dito "sexo frágil": repartir as tarefas
domésticas em pé de igualdade com o homem, romper
os redutos masculinos, ocupar cargos de liderança e reduzir
as desigualdades salariais.
A revolução feminina, catalizada por métodos
contraceptivos, reduziu a taxa de fecundidade, alterou a função
da mulher na família e ajudou a empregar, apenas nos EUA,
45,6 milhões de mulheres desde 1950. Nesse período,
30,4 milhões de homens conseguiram emprego _40% do total
das vagas criadas.
Partindo da ocupação de 29% dos postos de trabalho
em 1950, as mulheres fecharam o mês passado nos EUA com 46,36%
das vagas. As especialistas, porém, são unânimes
em frisar que trabalho, para a mulher, nunca foi uma novidade.
"Historicamente, ela sempre ajudou a produzir o conjunto de
bens e serviços necessários para a sobrevivência",
diz a brasileira Helena Hirata, pesquisadora do Centre National
de la Recherche Scientifique, órgão do governo francês.
BRASILEIRAS
OCUPAM MAIS DE 60% DAS VAGAS DE... |
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1988 |
1992 |
1995 |
Costureira |
93,7 |
93,8 |
92,9 |
Prof. de
1 primeiro grau |
89,6 |
89,0 |
88,9 |
Secretária |
89,2 |
88,7 |
87,7 |
Telefonista |
86,3 |
87,7 |
86,9 |
Enfermeira |
84,3 |
85,5 |
84,2 |
Recepcionista |
80,6 |
81,3 |
81,7 |
Prof. de
2 segundo grau |
72,4 |
70,4 |
69,8 |
Cozinheira |
65,9 |
68,4 |
69,6 |
Auxiliar
contábil/caixa |
58,6 |
62,2 |
66,1 |
Datilógrafa/Estenógrafa |
67,9 |
--- |
64,7 |
Fonte:
Rais 1995 |
Mas como a
sociedade não reconhece as tarefas domésticas como
trabalho, apenas com a profissionalização a atividade
da mulher "passou a se tornar visível", como afirma
Maria Cristina Bruschini, da Fundação Carlos Chagas.
Essa distinção entre as atividades doméstica
e profissional começou a se intensificar com o capitalismo
e o advento de indústrias como a têxtil, que recorreu
sistematicamente às mulheres. Com a massificação
da educação, esse estímulo recebeu um impulso
decisivo.
Para Christian Baudelot e Roger Establet, a educação
feminina progrediu mais neste século que em todo o milênio.
Segundo os autores de "Allez les filles!" (Avante Mulheres!),
o século começou com 624 francesas na universidade
(e 27 mil franceses). Em 71, porém, a fatia das mulheres
já era de 50%.
Educadas, capacitadas profissionalmente e com a pílula à
mão, elas saíram de casa. Se na metade do século
33% das americanas com mais de 16 anos estavam empregadas ou procurando
uma vaga, no mês passado essa taxa chegou a 60%. Para os homens,
foi de 75,4%.
E OS FILHOS?
Para aproximar ainda mais essas taxas, a mulher terá de continuar
a se debater com outra questão: Quem vai cuidar da casa e
dos filhos? Responsável por essas tarefas, ela precisa de
suporte para trabalhar _do homem e de creches.
Para muitas especialistas, puxar o homem um pouco mais "para
dentro de casa" é o grande desafio feminino no século
21. "Precisamos resolver a questão da socialização
das crianças", afirma Hildete Pereira, do Ipea (Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada).
Para se ter uma idéia da importância desse fator, na
Holanda, um dos países em que a responsabilidade pelos filhos
é mais compartilhada, os homens passam cerca de 14 horas
por semana cuidando das crianças. E as mulheres? 30 horas.
Se cuidar dos filhos pode ter apelo diante dos homens, para as demais
tarefas o quadro é mais complicado. E, para as pesquisadoras,
porque envolve outra questão: o poder. "A identificação
das pessoas na sociedade se dá por seu trabalho e sua renda",
diz Maria Cristina. Outras funções têm peso
menor. Como fazer compras e organizar a casa são desvalorizados
socialmente, o homem reluta em dividir essas tarefas, o que põe
a mulher em desvantagem no mercado.
Para Sandra Brandão, do Seade (Fundação Sistema
Estadual de Análise de Dados), a sociedade precisa "entender
que algumas tarefas impostas às mulheres não são
delas, mas de toda a sociedade".
Suas colegas batem forte na mesma tecla: "Deveria haver uma
partilha de responsabilidades" (Helena); "É preciso
haver uma consciência dessa desigualdade" (Maria Cristina).
O tom enfático ecoa na avaliação da Comunidade
Européia no estudo "Employment Rates Report 1998":
"Uma maior divisão das responsabilidades familiares
facilitaria a participação das mulheres, mas isso
não parece evoluir num ritmo satisfatório".
Essas atribuições criariam o que Cristina Cacciamali,
professora da Faculdade de Economia e Administração
da USP, define como o "risco mulher". Os empregadores
torceriam o nariz na hora de contratá-las, preocupados com
a possibilidade de gravidez e com suas responsabilidades em casa,
o que induziria à ausência do trabalho.
Cristina também demonstra um certo ceticismo: "Essas
relações são mais complexas que as do mercado,
envolvem emoções. É necessário redefinir
papéis mesmo".
OS NICHOS
A grita por uma redefinição de papéis, porém,
não surge só no seio familiar. A entrada da mulher
no mercado acabou espelhando séculos de sua valorização
apenas em atividades domésticas, ajudando a criar os "nichos
de mercado".
Na Europa, metade das trabalhadoras se concentram em cerca de uma
dezena de funções. São secretárias,
vendedoras, domésticas, professoras, enfermeiras, garçonetes,
trabalhando ainda em serviços administrativos e ligados a
cuidados pessoais. O quadro não é diferente em outros
países. Várias desses postos, diz Hildete, reproduzem
atividades que elas exerciam em casa, ligadas à administração
do lar e ao cuidar dos filhos.
As especialistas afirmam que romper nichos é fundamental
para ampliar os horizontes femininos. Para Sandra, até tradicionais
redutos masculinos, como a construção civil, podem
ser ocupados em função dos avanços tecnológicos:
"Operar máquinas é algo que homens e mulheres
podem fazer."
Ela ressalta que a questão não é apenas técnica,
mas cultural, e por isso de mudança lenta. A favor de seu
otimismo pesa a mutação ocorrida na natureza do trabalho
nas últimas décadas. A urbanização,
os boons tecnológico e do setor de serviços favoreceram
as mulheres, criando vagas em que a força física é
dispensável. E foram movimentos independentes de qualquer
reivindicação feminina.
... para
ganhar mais
A melhoria
na escolaridade e a invasão do mercado não garantiram
ao sexo feminino, porém, salários iguais aos dos homens.
Por quê? Entre os fatores apontados pelas pesquisadoras, três
se destacam: os nichos de mercado (muitos de baixos salários,
como a atividade doméstica), o fato de as mulheres ainda
estarem restritas aos cargos de gerência, e não de
liderança, e o "risco mulher", que se transforma,
na conta dos empregadores, em um "custo mulher".
Na raiz desses problemas ainda estaria uma visão tradicional
do papel da mulher na sociedade. Para Laís Abramo, é
preciso "mudar o caráter das leis, tendo como pressuposto
que a responsabilidade familiar tem que ser mais compartilhada entre
homens e mulheres".
Especialista da OIT (Organização Internacional do
Trabalho) em gênero e emprego para a América Latina,
ela cita o caso das creches.
Na maioria dos países, a lei vincula a necessidade de a empresa
manter uma creche ao número de mulheres empregadas. Se por
um lado a determinação é positiva e favorece
as mulheres, por outro reflete a idéia de que a responsabilidade
pelo filho é apenas delas.
Laís argumenta que a lei poderia vincular a obrigatoriedade
ao número de trabalhadores ou de empregados com filhos, independentemente
de sexo. Seria uma forma de reduzir o tal "custo mulher".
A própria divisão entre as licenças maternidade
e paternidade poderia ter uma melhor distribuição.
No Brasil, ela é de uma semana para os homens e de quatro
meses para as mulheres. Em alguns países já se pensa
em dividir igualmente o período de afastamento.
As mulheres também ficariam em segundo plano na hora dos
aumentos e promoções. Para Laís, o "mito"
de que a mulher é responsável prioritariamente pelos
filhos "influencia toda a sua carreira".
Como predomina a idéia de que o homem é o provedor,
ele ganha as primeiras vagas na fila por melhores posições
nas empresas.
AUTO-DESVALORIZAÇÃO
Helena Hirata, que também é pesquisadora visitante
do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico), acrescenta outro ponto de vista: "A
remuneração pode ser baixa porque a referência
é a gratuidade do trabalho doméstico". Acostumadas
a trabalhar em casa e sem receber um tostão, muitas mulheres
se sentiriam "no lucro" mesmo ao ganhar menos que homens
que realizam funções idênticas.
O resultado da ação conjunta desses fatores se reflete
nas estatísticas do Seade: a mulher recebeu, em média,
74,3% do salário do homem na região metropolitana
de São Paulo no ano passado (veja quadro). A situação
se repete mesmo nos EUA, que tem alta taxa de participação
feminina. Lá elas ganham 76,5% do salário deles.
E não adianta a mulher argumentar que tem maior escolaridade.
A diferença se manifesta em todos os cortes possíveis,
como idade, faixa salarial e até mesmo escolaridade. Para
ganhar o mesmo que ele, ela precisa estudar mais.
Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios)
97, a mulher só consegue alguma igualdade nas faixas de renda
mais baixas: entre os que ganham até um salário mínimo,
51,5% são homens e 48,5% são mulheres.
Cresce o salário, cai a participação feminina.
Entre os que recebem mais de 20 salários, 19,3% são
mulheres. As demais vagas (80,7%) ficam para os homens.
Esse cenário é particularmente dramático em
países desiguais, como o Brasil. Das mulheres que trabalham,
46,4% ganham até um salário (26%) ou simplesmente
não têm rendimento nenhum (20,4%).
Para 7 milhões de brasileiras, a revolução
feminina, gestada num cenário marcado por várias crises
econômicas, não pode nem ser comemorada. Ganhando até
um salário e muitas tendo de administrar a casa e cuidar
dos filhos, acabam expostas à dupla jornada. Como resultado,
diz Maria Cristina Bruschini, "vivem na corda bamba e envelhecem
rapidamente".
O receituário para atenuar esse cenário passa, obviamente,
por uma melhora na situação geral do país.
Mas diante de questões como a desigualdade salarial para
tarefas iguais _mesmo em países que esbanjam indicadores
favoráveis_ retorna-se ao ponto de partida.
A briga que as mulheres precisarão enfrentar para conseguir
uma maior igualdade profissional envolve poder. E será travada,
cada vez mais, dentro de casa.
(JOÃO LEIVA FILHO)
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