São Paulo, domingo, 30 de Maio de 1999

Ela quer dividir a tarefa doméstica ...

CHEGAR AOS CARGOS DE LIDERANÇA E AMPLIAR ÁREAS DE ATUAÇÃO SÃO DESAFIOS DO SÉCULO 21

JOÃO LEIVA FILHO
Editor-adjunto de Especiais
Após um final de milênio em que a mulher literalmente invadiu o mercado, o século 21 reserva ainda mais desafios para o dito "sexo frágil": repartir as tarefas domésticas em pé de igualdade com o homem, romper os redutos masculinos, ocupar cargos de liderança e reduzir as desigualdades salariais.
A revolução feminina, catalizada por métodos contraceptivos, reduziu a taxa de fecundidade, alterou a função da mulher na família e ajudou a empregar, apenas nos EUA, 45,6 milhões de mulheres desde 1950. Nesse período, 30,4 milhões de homens conseguiram emprego _40% do total das vagas criadas.
Partindo da ocupação de 29% dos postos de trabalho em 1950, as mulheres fecharam o mês passado nos EUA com 46,36% das vagas. As especialistas, porém, são unânimes em frisar que trabalho, para a mulher, nunca foi uma novidade.
"Historicamente, ela sempre ajudou a produzir o conjunto de bens e serviços necessários para a sobrevivência", diz a brasileira Helena Hirata, pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique, órgão do governo francês.

BRASILEIRAS OCUPAM MAIS DE 60% DAS VAGAS DE...
  1988 1992 1995
Costureira 93,7 93,8 92,9
Prof. de 1 primeiro grau 89,6 89,0 88,9
Secretária 89,2 88,7 87,7
Telefonista 86,3 87,7 86,9
Enfermeira 84,3 85,5 84,2
Recepcionista 80,6 81,3 81,7
Prof. de 2 segundo grau 72,4 70,4 69,8
Cozinheira 65,9 68,4 69,6
Auxiliar contábil/caixa 58,6 62,2 66,1
Datilógrafa/Estenógrafa 67,9 --- 64,7
Fonte: Rais 1995

Mas como a sociedade não reconhece as tarefas domésticas como trabalho, apenas com a profissionalização a atividade da mulher "passou a se tornar visível", como afirma Maria Cristina Bruschini, da Fundação Carlos Chagas.
Essa distinção entre as atividades doméstica e profissional começou a se intensificar com o capitalismo e o advento de indústrias como a têxtil, que recorreu sistematicamente às mulheres. Com a massificação da educação, esse estímulo recebeu um impulso decisivo.
Para Christian Baudelot e Roger Establet, a educação feminina progrediu mais neste século que em todo o milênio. Segundo os autores de "Allez les filles!" (Avante Mulheres!), o século começou com 624 francesas na universidade (e 27 mil franceses). Em 71, porém, a fatia das mulheres já era de 50%.
Educadas, capacitadas profissionalmente e com a pílula à mão, elas saíram de casa. Se na metade do século 33% das americanas com mais de 16 anos estavam empregadas ou procurando uma vaga, no mês passado essa taxa chegou a 60%. Para os homens, foi de 75,4%.

E OS FILHOS?
Para aproximar ainda mais essas taxas, a mulher terá de continuar a se debater com outra questão: Quem vai cuidar da casa e dos filhos? Responsável por essas tarefas, ela precisa de suporte para trabalhar _do homem e de creches.
Para muitas especialistas, puxar o homem um pouco mais "para dentro de casa" é o grande desafio feminino no século 21. "Precisamos resolver a questão da socialização das crianças", afirma Hildete Pereira, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Para se ter uma idéia da importância desse fator, na Holanda, um dos países em que a responsabilidade pelos filhos é mais compartilhada, os homens passam cerca de 14 horas por semana cuidando das crianças. E as mulheres? 30 horas.
Se cuidar dos filhos pode ter apelo diante dos homens, para as demais tarefas o quadro é mais complicado. E, para as pesquisadoras, porque envolve outra questão: o poder. "A identificação das pessoas na sociedade se dá por seu trabalho e sua renda", diz Maria Cristina. Outras funções têm peso menor. Como fazer compras e organizar a casa são desvalorizados socialmente, o homem reluta em dividir essas tarefas, o que põe a mulher em desvantagem no mercado.
Para Sandra Brandão, do Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), a sociedade precisa "entender que algumas tarefas impostas às mulheres não são delas, mas de toda a sociedade".
Suas colegas batem forte na mesma tecla: "Deveria haver uma partilha de responsabilidades" (Helena); "É preciso haver uma consciência dessa desigualdade" (Maria Cristina). O tom enfático ecoa na avaliação da Comunidade Européia no estudo "Employment Rates Report 1998": "Uma maior divisão das responsabilidades familiares facilitaria a participação das mulheres, mas isso não parece evoluir num ritmo satisfatório".
Essas atribuições criariam o que Cristina Cacciamali, professora da Faculdade de Economia e Administração da USP, define como o "risco mulher". Os empregadores torceriam o nariz na hora de contratá-las, preocupados com a possibilidade de gravidez e com suas responsabilidades em casa, o que induziria à ausência do trabalho.
Cristina também demonstra um certo ceticismo: "Essas relações são mais complexas que as do mercado, envolvem emoções. É necessário redefinir papéis mesmo".

OS NICHOS
A grita por uma redefinição de papéis, porém, não surge só no seio familiar. A entrada da mulher no mercado acabou espelhando séculos de sua valorização apenas em atividades domésticas, ajudando a criar os "nichos de mercado".
Na Europa, metade das trabalhadoras se concentram em cerca de uma dezena de funções. São secretárias, vendedoras, domésticas, professoras, enfermeiras, garçonetes, trabalhando ainda em serviços administrativos e ligados a cuidados pessoais. O quadro não é diferente em outros países. Várias desses postos, diz Hildete, reproduzem atividades que elas exerciam em casa, ligadas à administração do lar e ao cuidar dos filhos.
As especialistas afirmam que romper nichos é fundamental para ampliar os horizontes femininos. Para Sandra, até tradicionais redutos masculinos, como a construção civil, podem ser ocupados em função dos avanços tecnológicos: "Operar máquinas é algo que homens e mulheres podem fazer."
Ela ressalta que a questão não é apenas técnica, mas cultural, e por isso de mudança lenta. A favor de seu otimismo pesa a mutação ocorrida na natureza do trabalho nas últimas décadas. A urbanização, os boons tecnológico e do setor de serviços favoreceram as mulheres, criando vagas em que a força física é dispensável. E foram movimentos independentes de qualquer reivindicação feminina
.

... para ganhar mais

A melhoria na escolaridade e a invasão do mercado não garantiram ao sexo feminino, porém, salários iguais aos dos homens.
Por quê? Entre os fatores apontados pelas pesquisadoras, três se destacam: os nichos de mercado (muitos de baixos salários, como a atividade doméstica), o fato de as mulheres ainda estarem restritas aos cargos de gerência, e não de liderança, e o "risco mulher", que se transforma, na conta dos empregadores, em um "custo mulher".
Na raiz desses problemas ainda estaria uma visão tradicional do papel da mulher na sociedade. Para Laís Abramo, é preciso "mudar o caráter das leis, tendo como pressuposto que a responsabilidade familiar tem que ser mais compartilhada entre homens e mulheres".
Especialista da OIT (Organização Internacional do Trabalho) em gênero e emprego para a América Latina, ela cita o caso das creches.
Na maioria dos países, a lei vincula a necessidade de a empresa manter uma creche ao número de mulheres empregadas. Se por um lado a determinação é positiva e favorece as mulheres, por outro reflete a idéia de que a responsabilidade pelo filho é apenas delas.
Laís argumenta que a lei poderia vincular a obrigatoriedade ao número de trabalhadores ou de empregados com filhos, independentemente de sexo. Seria uma forma de reduzir o tal "custo mulher".
A própria divisão entre as licenças maternidade e paternidade poderia ter uma melhor distribuição. No Brasil, ela é de uma semana para os homens e de quatro meses para as mulheres. Em alguns países já se pensa em dividir igualmente o período de afastamento.
As mulheres também ficariam em segundo plano na hora dos aumentos e promoções. Para Laís, o "mito" de que a mulher é responsável prioritariamente pelos filhos "influencia toda a sua carreira".
Como predomina a idéia de que o homem é o provedor, ele ganha as primeiras vagas na fila por melhores posições nas empresas.

AUTO-DESVALORIZAÇÃO
Helena Hirata, que também é pesquisadora visitante do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), acrescenta outro ponto de vista: "A remuneração pode ser baixa porque a referência é a gratuidade do trabalho doméstico". Acostumadas a trabalhar em casa e sem receber um tostão, muitas mulheres se sentiriam "no lucro" mesmo ao ganhar menos que homens que realizam funções idênticas.
O resultado da ação conjunta desses fatores se reflete nas estatísticas do Seade: a mulher recebeu, em média, 74,3% do salário do homem na região metropolitana de São Paulo no ano passado (veja quadro). A situação se repete mesmo nos EUA, que tem alta taxa de participação feminina. Lá elas ganham 76,5% do salário deles.
E não adianta a mulher argumentar que tem maior escolaridade. A diferença se manifesta em todos os cortes possíveis, como idade, faixa salarial e até mesmo escolaridade. Para ganhar o mesmo que ele, ela precisa estudar mais.
Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 97, a mulher só consegue alguma igualdade nas faixas de renda mais baixas: entre os que ganham até um salário mínimo, 51,5% são homens e 48,5% são mulheres.
Cresce o salário, cai a participação feminina. Entre os que recebem mais de 20 salários, 19,3% são mulheres. As demais vagas (80,7%) ficam para os homens.
Esse cenário é particularmente dramático em países desiguais, como o Brasil. Das mulheres que trabalham, 46,4% ganham até um salário (26%) ou simplesmente não têm rendimento nenhum (20,4%).
Para 7 milhões de brasileiras, a revolução feminina, gestada num cenário marcado por várias crises econômicas, não pode nem ser comemorada. Ganhando até um salário e muitas tendo de administrar a casa e cuidar dos filhos, acabam expostas à dupla jornada. Como resultado, diz Maria Cristina Bruschini, "vivem na corda bamba e envelhecem rapidamente".
O receituário para atenuar esse cenário passa, obviamente, por uma melhora na situação geral do país. Mas diante de questões como a desigualdade salarial para tarefas iguais _mesmo em países que esbanjam indicadores favoráveis_ retorna-se ao ponto de partida.
A briga que as mulheres precisarão enfrentar para conseguir uma maior igualdade profissional envolve poder. E será travada, cada vez mais, dentro de casa.
(JOÃO LEIVA FILHO)



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.