São Paulo, domingo, 30 de Maio de 1999

Tempo de trabalho cai,
mas não para todos


"FALSOS MACUNAÍMAS", OS BRASILEIROS
TRABALHAM MAIS DO QUE OS EUROPEUS


JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
da Reportagem Local
Vamos trabalhar menos no futuro, com prevêem alguns teóricos? Provavelmente sim. Mas essa previsão não valerá para todos.
Os dados mostram que, ao longo deste século, a carga de trabalho média caiu a dois terços ou mesmo à metade, dependendo do país. O problema é saber quem vai se beneficiar dessa tendência.
Para entender melhor a situação, vale lembrar a velha piada: se uma pessoa comeu um frango e a outra, nenhum, na média ambas comeram meia ave. Do mesmo modo, a regra secular de diminuição da jornada de trabalho exclui uma parte significativa da humanidade.

Funcionário trabalha em linha de produção de relógios de ponto, utilizados para controlar jornada


Um número crescente de pessoas simplesmente não vai trabalhar (os desempregados). Um segundo contingente, cada vez maior, vai ter uma (ou mais de uma) ocupação em tempo parcial.
No outro prato da balança está um grupo emergente de trabalhadores que é frequentemente instado a fazer horas-extras para atender ao aumento da demanda de produção em seus setores. No meio, está o grupo de trabalhadores com jornada plena (44 horas semanais). De todos, é o único que está diminuindo de tamanho.
É o que mostram dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) compilados pelo economista Marcio Pochmann, da Universidade Estadual de Campinas, em um amplo estudo sobre a jornada de trabalho. A pesquisa abrange o Brasil e outros países.

FLEXIBILIZAÇÃO
O professor da Unicamp diz que todos esses movimentos estão conectados com a flexibilização do uso do trabalho. Ou seja: a adequação do tempo de trabalho ao volume da produção. Ela substitui a prática anterior de fazer o ajuste pela quantidade de empregados.
Em 20 anos, o percentual de desempregados no Brasil foi multiplicado por três. Já o percentual dos empregados que trabalham até 39 horas por semana dobrou de 14,2% para 24,8%, enquanto o dos que têm jornadas maiores do que prevê a Constituição saltou de 34,6% para 41,2% da PEA (População Economicamente Ativa).
A alta do desemprego no Brasil está ligada à estagnação econômica das duas últimas décadas, à abertura comercial implantada nos anos 90 (que levou à troca da produção pela importação) e à reestruturação das grandes empresas (novas formas de gestão e inovações tecnológicas).
O aumento das pessoas em jornada parcial reflete a precarização do mercado de trabalho: a difusão do emprego sem registro e "bicos''.
Já a variação do contingente de trabalhadores que têm jornada estendida acompanha o ritmo da economia. Se há aquecimento, as empresas, em vez de contratar mais empregados, aumentam as horas-extras dos já contratados.
Uma outra causa provável, lembra Pochmann, é a transformação de assalariados em trabalhadores autônomos, ou por conta própria. Muitas vezes eles são obrigados a trabalhar mais para obter uma renda equivalente à que tinham quando eram contratados.
Na média, entretanto, a carga de trabalho no Brasil está em queda desde quando as estatísticas alcançam. Em 1913, um brasileiro médio trabalhava 3.016 horas por ano.
Para se ter uma idéia de quanto isso significa, nem seria possível dividir esse tempo em jornadas de 8 horas porque seriam necessários mais dias (377) do que há no ano para completá-la. Se a pessoa trabalhasse todo dia, os sete dias por semana, sua jornada média seria de 8 horas e 15 minutos.
Desde então a lei instituiu a jornada de 44 horas semanais, as férias remuneradas de 30 dias por ano e outros benefícios que forçaram a queda desta média.
Em 1996, ela já era bem menor: 2.102 horas/ano (o equivalente a trabalhar 8 horas durante 263 dias por ano). Ou, se se trabalhasse todos os dias do ano, a média diária seria de 5 horas e 45 minutos.

"MITO DE MACUNAÍMA"
A comparação desses dados com os de outros países afasta o "mito de Macunaíma", de que o brasileiro é preguiçoso. Na verdade, a média de horas trabalhadas no país é maior do que a de países europeus, Japão e Estados Unidos.
E não se trata de um fenômeno recente. Em 1913, como mostra o estudo de Pochmann, o trabalhador brasileiro ainda enfrentava uma jornada anual na casa das 3.000 horas _um patamar já deixado para trás pelos países desenvolvidos desde antes de 1870.
A queda da carga de trabalho prosseguiu em todos os países nas décadas seguintes, mas o brasileiro continuou trabalhando mais. Em 1938, a jornada mais próxima da brasileira era a alemã e, mesmo assim, ainda era 18% menor.
A essa altura, já havia mais de 30 anos que a Europa tinha instituído a jornada diária de 8 horas. No Brasil, embora prevista na Constituição de 1934, ela só seria disciplinada em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho.
A tendência universal de queda no tempo trabalhado continuou até o início dos anos 80, quando estancou em vários países e foi invertida em outros. Essa mudança tem razões distintas em cada país. Nos EUA, por exemplo, a carga horária de 1996 é maior do que a de 1983, que por sua vez supera a carga horária de 1970. O motivo, afirma Pochmann, está ligado ao uso intensivo de horas-extras, ao trabalho autônomo e à terceirização.
"Em vez de contratar mais mão-de-obra, como faziam até então, as empresas optaram por duas novas estratégias: obrigar seus funcionários a estender sua jornada, ou lançar mão da subcontratação'', diz.
É o caso, por exemplo, da UPS (serviços postais), que em lugar de contratar novos entregadores segundo as normas previstas no contrato de trabalho assinado junto ao sindicato da categoria, preferiu usar trabalhadores terceirizados.
Esses trabalhadores são contratados por outras empresas e estão sujeitos a jornadas maiores, pois não se beneficiam do contrato coletivo dos funcionários da UPS.

TEMPO PARCIAL
No caso oposto, dos países que continuaram a registrar queda na carga horária, o melhor exemplo é o da Holanda, que hoje apresenta uma taxa de desemprego de apenas 3,6%. Em grande parte, a redução da jornada holandesa nas duas últimas décadas se deveu à maior presença dos trabalhadores com emprego de tempo parcial.
Em 1973, apenas 13% dos ocupados holandeses tinham um emprego de até 30 horas semanais. Esse percentual praticamente triplicou até 1996, quando já somava 37% dos empregados naquele país.
"Isso foi fruto de pactos feitos entre os sindicatos patronais, de trabalhadores e o governo para combater o desemprego e atender à demanda das empresas. Elas queriam maior flexibilidade para compatibilizar o tempo de trabalho de seus funcionários com o ritmo de produção'', diz Pochmann.
As diferenças entre EUA e Holanda mostram que o aumento da heterogeneidade é a tendência para o futuro da jornada de trabalho.
Infelizmente, teóricos como o sociólogo italiano Domenico De Masi estão certos apenas no que se refere a uma parte dos trabalhadores, para os quais haverá uma redução da jornada de trabalho _como os funcionários da Volkswagen alemã, que já trabalham menos de 29 horas por semana.
Mas há um aumento das desigualdades. Ela cresce entre os países, entre os ocupados e os desempregados e entre aqueles que ainda conseguem manter seu emprego assalariado e os que estão sujeitos às novas e mais flexíveis regras do mercado. Para os últimos predomina a perda de direitos que, como a jornada de 8 horas semanais, existiam havia mais de um século.



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