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Livro de Gilberto Freyre discute o papel sociológico e as origens culturais da moda praticada no Brasil Modas de mulher ERIKA PALOMINO COLUNISTA DA FOLHA Quem quiser entender a moda brasileira feita hoje deve parar, sentar e ler Modos de Homem & Modas de Mulher, de Gilberto Freyre. Longe de ser leitura típica dos iniciados da moda _muito ao contrário, aliás_ o texto explica bem ao modo do autor (como observa Carlos Heitor Cony no artigo desta página) as origens de certos aspectos que escapam mesmo (ou principalmente) aos olhos dos iniciados. É atual, inspirador e motivante, sobretudo nessa hora decisiva de buscar uma identidade qualquer, um denominador que seja, à produção e ao uso de roupas, sapatos, acessórios feitos por brasileiros. O assunto é complexo _antropológica, psicológica, sociológica, estética, eticamente complexo, escreve Freyre, desmontando logo de cara o clássico preconceito sobre uma suposta frivolidade da moda: Frívolo coisa nenhuma: em vários dos seus aspectos, gravemente complexo. Em seguida ganhamos uma perfeita definição do assunto. Moda como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo e resultante de determinado gosto, idéia, capricho, ou das influências do meio. Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar ou pentear etc. Arte e técnica de vestuário. Maneira, feição, modo. Vontade, fantasia, capricho. Fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social. Descobrimos, finalmente, a motivação por trás do medo da roupa de ontem, como dizem os fashionistas: Estar fora da moda é, para uma mulher ou um homem moderno, e vem sendo para a mulher e para o homem, através de vários tempos sociais, uma situação herética semelhante à da pessoa desgarrada de atitudes e de comportamentos predominantes ou representativos de pensares e sentires consagrados como ortodoxos em ética, religião, política, economia e noutros setores caracteristicamente socioculturais. Os estudos de Gilberto Freyre dão conta plenamente do funcionamento da engrenagem da moda, justificando as modificações ocorridas na indústria têxtil depois da Segunda Guerra, aceleradas a partir dos anos 60: As modas de mulher vêm tendendo a desmentir o absoluto da chamada luta de classes, tão cara ao marxismo ortodoxo. Com a possibilidade de produção em massa de artigos de uso femininos (tecidos, sapatos, adornos), vem se registrando, no Ocidente, caracterizado, em suas modernizações, por civilizações industrializadas, a facilidade da adoção de modas de mulher originadas de classes bem situadas socioeconomicamente por mulheres de outras classes: das de rendas mais baixas. Se não do mesmo material, da mesma aparência, explica Freyre, agora remetendo à cultura da cópia e da difusão de imagens em todo o mundo. O autor mostra também que conhece o mercado. O designer obedece, em grande parte, a interesses econômicos ligados ao uso de materiais de que se fazem vestidos, adornos, sapatos: ao que, nesses materiais, se apresente de mais rendoso através de sua utilização segundo vogas que os torne procurados nas confecções. O que não quer dizer que os designers sejam elementos passivos com relação ao êxito dessas vogas. Para o estilista fazer sucesso, portanto, ele deve utilizar materiais economicamente vantajosos e sensibilizar o público feminino ou o público masculino comprador dos artigos que sejam lançados. Bingo. Freyre avalia o que chama de aspecto psicológico da moda, por vezes superior ao econômico: Uma moda de mulher para ter êxito precisa de sensibilizar não só um gosto por formas, generalizado, na sociedade a que se dirige, como os egos que constituem esse todo coletivo. A mulher tende a ser, quanto a modas para seus vestidos, seus sapatos, seus penteados, um tanto maria-vai-com-as-outras. Portanto, a corresponder ao que a moda tem de uniformizante. Mas é da argúcia feminina a iniciativa de reagir contra essa uniformização absoluta, de acordo com características pessoais que não se ajustem a imposições. O início da cultura da importação das tendências estrangeiras vem de muito tempo. Os hypes de então vinham de Paris para as mulheres e de Londres para os homens, desde os tempos do Brasil colonial, mesmo quando correspondiam às estações do ano trocadas. Entre os abusos, capas de pele, cartolas pretas e casacas usadas em pleno verão carioca, por exemplo. Não só extravagantes, para o Brasil, como terrivelmente anti-higiênicas, antiecológicas, antitropicais, reclama Freyre. Raros, durante anos, os esquisitões que ousavam reagir, entre as elites sociais brasileiras, contra essa espécie de imperialismo cultural europeu. A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da França, sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a um Brasil, diferente no clima da França. Uma moda imposta à mulher brasileira e à qual essa, quando de gentes mais altas, das cidades principais, teve de adaptar-se, desbrasileirando-se e, até, torturando-se. Segundo o autor, São Paulo foi, até os anos 30, tão passiva colônia da França quanto o Rio. Modernistas como Oswald de Andrade viviam parte do ano em Paris e paulistas ricos tinham médicos, dentistas e amantes em Paris. As roupas nem sempre se ajustavam às formas de corpo de mulher predominante na população brasileira. Radical, o autor chama de albinismo a valorização do tipo físico europeu. Uma neutralização começaria a partir do fim do século 19, com uma romantização, partida de poetas sensíveis à predominância, no Brasil, de belezas femininas morenas. Acompanhando isso, começa uma crescente identificação do brasileiro com a tropicalidade e com a morenidade que caracterizam a natureza do Brasil e sua metarracialidade, conforme batiza Freyre. Condições que se projetam sobre os gostos de mulheres e homens brasileiros por modas que correspondam a elas, que sugestionam também os estilistas. Por sua vez, os criadores precisaram passar a acompanhar as formas e os à-vontades dos corpos brasileiros. Para o autor, o Brasil já começa a estar em situação não só de abrasileirar o que continua a receber de criações de grandes designers estrangeiros como de, reciprocamente, exportar design de brasileiros que sejam criações ideais não só para o próprio Brasil como para outros países. Sobre a beleza da mulher brasileira, sintetizada, por exemplo, na figura de Gisele Bündchen, Gilberto Freyre foi premonitório: Uma mulher brasileira capaz de, ela própria, pelo seu corpo admiravelmente equilibrador de contrastes, ser a mulher-modelo de modas de mulher, de vestir, de calçar e de pentear, susceptíveis de serem seguidas. Se o Brasil vem tendo, e tudo indica que continuará a ter, área de maior projeção transnacional, prossegue, é a São Paulo, como vanguarda, em termos mais que modernamente urbanos dessa posição, que cabe a maior responsabilidade de tornar-se foco de irradiação de modas brasileiras. É um Brasil liderado por São Paulo, mas com criatividades de várias origens, que se apresenta destinado a criar modos e modas de vestir, de calçar e de pentear. Um São Paulo, o brasileiro, com suas deficiências, suas incorreções, suas traições a seu passado, sua falta de um flexível planejamento do seu futuro. Que sejam igualmente confirmadas as previsões de Gilberto Freyre diante das grandezas e possíveis proezas dos brasileiros, em especial aqui relacionadas à moda. Um bom início pode ter sido a valorização das curvas das mulheres brasileiras no tal Planeta Fashion. O resto, o tempo dirá. Leia mais: Vitalidade, alegria e prazer |
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