Página inicial

Fashionista


Verão 2001

Modas de mulher

Entrevista

Chapeleiro

Cultura fashion
nas ruas


Alexandre
Herchcovitch


Moeda do luxo

 
Livro de Gilberto Freyre discute o papel sociológico e as origens culturais da moda praticada no Brasil


Modas de mulher


ERIKA PALOMINO

COLUNISTA DA FOLHA

Quem quiser entender a moda brasileira feita hoje deve parar, sentar e ler “Modos de Homem & Modas de Mulher”, de Gilberto Freyre. Longe de ser leitura típica dos iniciados da moda _muito ao contrário, aliás_ o texto explica bem ao modo do autor (como observa Carlos Heitor Cony no artigo desta página) as origens de certos aspectos que escapam mesmo (ou principalmente) aos olhos dos iniciados. É atual, inspirador e motivante, sobretudo nessa hora decisiva de buscar uma identidade qualquer, um denominador que seja, à produção e ao uso de roupas, sapatos, acessórios feitos por brasileiros.

“O assunto é complexo _antropológica, psicológica, sociológica, estética, eticamente complexo”, escreve Freyre, desmontando logo de cara o clássico preconceito sobre uma suposta frivolidade da moda: “Frívolo coisa nenhuma: em vários dos seus aspectos, gravemente complexo”.

Em seguida ganhamos uma perfeita definição do assunto. “Moda como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo e resultante de determinado gosto, idéia, capricho, ou das influências do meio. Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar ou pentear etc. Arte e técnica de vestuário. Maneira, feição, modo. Vontade, fantasia, capricho. Fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social.”

Descobrimos, finalmente, a motivação por trás do medo da roupa “de ontem”, como dizem os fashionistas: “Estar ‘fora da moda’ é, para uma mulher ou um homem moderno, e vem sendo para a mulher e para o homem, através de vários tempos sociais, uma situação herética semelhante à da pessoa desgarrada de atitudes e de comportamentos predominantes ou representativos de pensares e sentires consagrados como ortodoxos em ética, religião, política, economia e noutros setores caracteristicamente socioculturais”.

Os estudos de Gilberto Freyre dão conta plenamente do funcionamento da engrenagem da moda, justificando as modificações ocorridas na indústria têxtil depois da Segunda Guerra, aceleradas a partir dos anos 60: “As modas de mulher vêm tendendo a desmentir o absoluto da chamada luta de classes, tão cara ao marxismo ortodoxo. Com a possibilidade de produção em massa de artigos de uso femininos (tecidos, sapatos, adornos), vem se registrando, no Ocidente, caracterizado, em suas modernizações, por civilizações industrializadas, a facilidade da adoção de modas de mulher originadas de classes bem situadas socioeconomicamente por mulheres de outras classes: das de rendas mais baixas.”

“Se não do mesmo material, da mesma aparência”, explica Freyre, agora remetendo à cultura da cópia e da difusão de imagens em todo o mundo.

O autor mostra também que conhece o mercado. “O designer obedece, em grande parte, a interesses econômicos ligados ao uso de materiais de que se fazem vestidos, adornos, sapatos: ao que, nesses materiais, se apresente de mais rendoso através de sua utilização segundo vogas que os torne procurados nas confecções. O que não quer dizer que os designers sejam elementos passivos com relação ao êxito dessas vogas.”

Para o estilista fazer sucesso, portanto, ele deve “utilizar materiais economicamente vantajosos e sensibilizar o público feminino ou o público masculino comprador dos artigos que sejam lançados”. Bingo.

Freyre avalia o que chama de aspecto psicológico da moda, por vezes superior ao econômico: “Uma moda de mulher para ter êxito precisa de sensibilizar não só um gosto por formas, generalizado, na sociedade a que se dirige, como os egos que constituem esse todo coletivo. A mulher tende a ser, quanto a modas para seus vestidos, seus sapatos, seus penteados, um tanto maria-vai-com-as-outras. Portanto, a corresponder ao que a moda tem de uniformizante. Mas é da argúcia feminina a iniciativa de reagir contra essa uniformização absoluta, de acordo com características pessoais que não se ajustem a imposições”.

O início da cultura da importação das tendências estrangeiras vem de muito tempo. Os hypes de então vinham de Paris para as mulheres e de Londres para os homens, desde os tempos do Brasil colonial, mesmo quando correspondiam às estações do ano “trocadas”. Entre os “abusos”, capas de pele, cartolas pretas e casacas usadas em pleno verão carioca, por exemplo. “Não só extravagantes, para o Brasil, como terrivelmente anti-higiênicas, antiecológicas, antitropicais”, reclama Freyre. “Raros, durante anos, os esquisitões que ousavam reagir, entre as elites sociais brasileiras, contra essa espécie de imperialismo cultural europeu.”

“A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da França, sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a um Brasil, diferente no clima da França. Uma moda imposta à mulher brasileira e à qual essa, quando de gentes mais altas, das cidades principais, teve de adaptar-se, desbrasileirando-se e, até, torturando-se.”

Segundo o autor, São Paulo foi, até os anos 30, “tão passiva colônia da França quanto o Rio”. Modernistas como Oswald de Andrade viviam parte do ano em Paris e paulistas ricos tinham médicos, dentistas e amantes em Paris. As roupas nem sempre se ajustavam às formas de corpo de mulher predominante na população brasileira.

Radical, o autor chama de “albinismo” a valorização do tipo físico europeu. Uma neutralização começaria a partir do fim do século 19, com “uma romantização, partida de poetas sensíveis à predominância, no Brasil, de belezas femininas morenas”.

Acompanhando isso, começa uma crescente identificação do brasileiro com a tropicalidade e com a morenidade que caracterizam a natureza do Brasil e sua “metarracialidade”, conforme batiza Freyre.

Condições que se projetam sobre os gostos de mulheres e homens brasileiros por modas que correspondam a elas, que sugestionam também os estilistas. Por sua vez, os criadores precisaram passar a acompanhar “as formas e os à-vontades” dos corpos brasileiros.

Para o autor, o Brasil já começa a estar em situação não só de abrasileirar o que continua a receber de criações de grandes designers estrangeiros como de, reciprocamente, exportar design de brasileiros que sejam criações ideais não só para o próprio Brasil como para outros países.

Sobre a beleza da mulher brasileira, sintetizada, por exemplo, na figura de Gisele Bündchen, Gilberto Freyre foi premonitório: “Uma mulher brasileira capaz de, ela própria, pelo seu corpo admiravelmente equilibrador de contrastes, ser a mulher-modelo de modas de mulher, de vestir, de calçar e de pentear, susceptíveis de serem seguidas”.

“Se o Brasil vem tendo, e tudo indica que continuará a ter, área de maior projeção transnacional”, prossegue, “é a São Paulo, como vanguarda, em termos mais que modernamente urbanos dessa posição, que cabe a maior responsabilidade de tornar-se foco de irradiação de modas brasileiras”. “É um Brasil liderado por São Paulo, mas com criatividades de várias origens, que se apresenta destinado a criar modos e modas de vestir, de calçar e de pentear. Um São Paulo, o brasileiro, com suas deficiências, suas incorreções, suas traições a seu passado, sua falta de um flexível planejamento do seu futuro.”

Que sejam igualmente confirmadas as previsões de Gilberto Freyre diante das grandezas e possíveis proezas dos brasileiros, em especial aqui relacionadas à moda. Um bom início pode ter sido a valorização das curvas das mulheres brasileiras no tal Planeta Fashion. O resto, o tempo dirá.


Leia mais: Vitalidade, alegria e prazer