São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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PONTO DE FUGA

O tamanho do nariz

JORGE COLI
em Nova York

Está errado comer a mulher dos outros? Steve Everett é um compulsivo devorador, com resultados desastrosos para sua vida sentimental e para sua carreira de jornalista. Acima de tudo, porém, Everett possui faro para detectar o podre ali onde ninguém percebe. É o personagem principal de "True Crime", último filme interpretado e dirigido por Clint Eastwood.
"True Crime" gira em torno da ética, tema obsessivo para o diretor. Uma ética que se assemelha às necessidades singulares da arte, às suas vozes silenciosas. Ela tem sua origem em convicções que precedem a consciência dos fatos, intuindo antes de provar, descobrindo verdades entre evidências. Determina uma ação e um dever inevitáveis. A fidelidade ao nariz atropela a fixação erótica, o sensacionalismo conformista exigido pelo jornal, a justiça que se acomoda num trabalho correto, mas insuficiente. É mais importante do que as simpatias e lágrimas, apresentadas na tela com uma curiosa frieza distante. Está acima até das inverossimilhanças do roteiro, que se origina num livro "pulp" de Andrew Klavan.
Orson Welles, em "A Marca da Maldade", mostrara os ambíguos perigos de intuições verdadeiras, mas que ignoram regras e leis. Eastwood indica, no oposto, a inanidade e o perigo das leis e das regras sem essas intuições. "True Crime" talvez seja seu filme mais concentrado, em que tudo é secundário, afora convicção e demonstração. Uma difícil geometria além dos raciocínios, em que o todo é muito maior do que o conjunto das partes.

OFF-OFF - Sexo, violência e metafísica: o Ontological-Hysteric Theater, filiado a Lacan e devoto de Artaud, criado há 30 anos por Richard Foreman, apresenta atualmente "Paradise Hotel", que se chama também "Hotel Fuck" ou "Hotel Beautiful Roses". É uma peça de "situação e pulsão", como a define Foreman, em que um ritmo frenético opõe sexualidades diretas e cruas a desejos furtivos e requintados.
Não há improviso: os atores entram e saem agitados, sem perder a marcação precisa. Os textos de Foreman ("From the Suburbanite", "Benita Canova") possuem uma bela fluência poética e seu teatro é muito ambicioso. Ele quer introduzir uma "vacilação" na vida mental, deixando escapar o inconsciente, que deveria explodir na arte. Projeto considerável, cujas intenções, na verdade, estão muito além do espetáculo simpático e engraçado. O teatro de Foreman foi chamado por um crítico de "vanguarda clássica", expressão que sugere o destino institucional de todas as subversões e ousadias em arte, sempre recuperadas pela cultura onívora de nosso tempo.

CHAVE - A morte pode ser justa ou injusta, arbitrária ou comandada. "True Crime" faz um contraponto entre o acidente de estrada, casual e absurdo, e a execução penal, sob rigoroso controle clínico e científico. Lembra o cristão Kieslowski: fragilidade da vida e imensa pretensão dos homens diante de um mistério que eles estão muito longe de compreender. Porém, tão fora de Deus quanto das instituições e da moral, os marginais de Eastwood sabem encontrar direções e sentidos.

CHINA - James Fowley fez um curioso filme, "The Corruptor", com Chow Yun-Fat, célebre astro em Hong Kong, e ainda Mark Wahlberg, ex-cantor que atuou em "Boogie Nights" usando uma prótese peniana. É uma retomada lírica dos dramas policiais dos anos 70, que coloriam com romantismo as cumplicidades entre parceiros, diante de um mundo em corrupção. Chinatown, muitas vezes mostrada do alto, parece uma toca de insetos, lugar natural para a mistura de etnias, de máfias e de "cops".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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