São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AUTORES
O proclamado "retorno do keynesianismo" é uma fantasia teórica
Keynes e os ilusionistas

ANTONIO NEGRI
especial para a Folha

Poucas são as coisas que -ao acompanhar o debate político europeu- conseguem me aborrecer mais do que as bombásticas declarações sobre "o retorno de Keynes!". É uma sucessão de colóquios acadêmicos; os títulos das revistas técnico-políticas (que se acautelam com um ponto de interrogação) proclamam a iminente vitória de Keynes; e mesmo os capitalistas, desestabilizados pela incessante sequência das crises, parecem estar se convertendo novamente ao keynesianismo.
Repito: nada consegue me aborrecer mais do que esse "retorno de Keynes". E, certamente, isso não acontece porque a obra política (ou a científica) de lorde Keynes me seja estranha; certamente não porque o problema da eliminação do desemprego (ao qual se atribui o título de tema primeiro do keynesianismo) me seja alheio; e nem sequer porque as dinâmicas políticas do Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) tenham a minha antipatia ou a minha hostilidade direta. Também compreendo por que hoje se comece, mais uma vez, a falar de Keynes e de keynesianismo: esse economista -e a teoria econômica nele inspirada- e a sua firme ação política de propaganda e intervenção possibilitaram, na década de 30 e por volta da Segunda Grande Guerra, a limitação dos efeitos da crise e, em certos casos, a reproposição do desenvolvimento por meio dos investimentos e da redistribuição da renda.
Evidente, portanto, que hoje, após os efeitos devastadores do liberalismo puro terem sido inteiramente sofridos, se tente um retorno a Keynes, se identifique no keynesianismo a hipótese de um "tournant" no desenvolvimento das teorias econômicas e da política econômica. Pois bem, tudo isso é ilusório! Não vão ser nem a teoria econômica de Keynes nem as audácias políticas do keynesianismo de tipo "welfarista" que irão nos ajudar a sair da crise (e de que crise!) hoje.
Meu mal-estar e aborrecimento certamente não derivam de um não-reconhecimento dos problemas pelos quais os países europeus e americanos, envolvidos na crise, estão passando; e, tampouco, de uma falta de sensibilidade para com os problemas, terríveis, que o desemprego, a deflação, a dissolução do Welfare State determinaram: derivam, sim, da consciência de que Keynes e o keynesianismo não são instrumentos adequados para a solução atual dos problemas da crise.
Por quê? Pela simples razão, bastante banal, de que a crise de hoje não é a crise dos anos 30 e, em segundo lugar, porque as relações de força que se alastram de modo antagonístico no interior de nossas sociedades não são as dos anos 30. Não por acaso, as esquerdas que subiram ao poder nos últimos anos na Europa -de Blair a Jospin a D'Alema a Schroeder-, mesmo enchendo a boca de keynesianismo, não conseguem executar uma única operação keynesiana nas economias européias (e eu não tenho a convicção de que não o façam por serem grupos políticos constituídos de "traidores" da social-democracia, de adeptos do novo "partido democrático imperial". Se não conseguem ser keynesianos, apesar dos gemidos e dos gritos do parto que se anuncia, significa que a dificuldade está em algum outro ponto).
Deixemos de lado, então, o fato de a crise apresentar, hoje, pouquíssimas características comuns à do imediato pós-guerra; a teoria keynesiana agia, de fato, no território de uma governabilidade nacional das economias que é hoje impossível e que, quando é proposta, é uma mistificação. Poderíamos, evidentemente, insistir bastante nessas constatações e, por exemplo, esclarecer como a lei Tobin (para a taxação das transferências de capitais) nada mais é do que uma derradeira tentativa de dar poder ao Estado-nação. Mas não é o que interessa acima de tudo. O fato é que os objetivos que Keynes (interpretado pela esquerda) tinha dado à pesquisa econômica e à ação política, ou seja, a ocupação plena e a redução das desigualdades sociais, já não são sustentados por aquele organograma de forças sociais (ou seja, de classe) que Keynes havia registrado em sua definição da sociedade econômica.
No imediato pós-guerra, depois do 1917 russo, o quadro político estava totalmente claro: havia uma classe operária que, para não fazer a revolução, tinha de obter um poder amplo na sociedade capitalista; havia uma burguesia que, se não quisesse ser massacrada pela guerra civil, tinha de pagar o preço desse compromisso: Keynes encontra o modo de administrar o compromisso em termos produtivos (sob controle monetário).
É imaginável, hoje em dia, uma situação dessas? Não, absolutamente não. Sem essas relações de forças sociais, o keynesianismo é impensável. O retorno a Keynes e o retorno do keynesianismo é realmente problemático a essa altura. Não existem as condições de governabilidade que o permitiam; mas, acima de tudo, já não existem as condições de força que o impunham. Infelizmente a síntese da ciência política sempre se estreita entre condições de possibilidade e eventos necessários. Isso posto, estamos talvez querendo dizer que os objetivos propostos pela ciência econômica de Keynes já morreram? Seriam não apenas irrealizáveis no modo em que Keynes propõe a sua realização, mas também pouco realistas e incertos e impossíveis? Certamente não. Mas, justamente, são objetivos que só podem ser realizados fora das condições previstas pelo modelo keynesiano.
O mundo mudou neste século, mudou uma enormidade. Especificamente, mudaram as formas da luta de classes (fenômeno tão antigo, nos dizem -e eu acredito-, quanto a Antiguidade clássica e até perfeitamente documentado durante toda a modernidade). Quais seriam, então, as formas da luta de classes contemporânea? O que significa, diante dessas novas formas de luta, se pôr diante do sacrossanto problema da eliminação do desemprego e de uma redução radical das desigualdades sociais? O desemprego estrutural, a deflação programática (da direita e da esquerda), a destruição do Welfare State e a acentuação neoliberal das diferenças sociais são condições históricas que o keynesianismo não podia prever e que, portanto, hoje não pode assumir.
Chega então de falatório sobre Keynes! Chega de ilusionismo arqueológico da economia política que sempre tem um pai fundador ao qual podemos nos remeter nos momentos de desorientação! Deixemos que a economia neoclássica torne a se apoderar de Keynes, por inteiro, e vamos nos ocupar, antes, das novas condições estruturais: um proletariado globalizado, uma construção social dos valores econômicos, uma exploração cada vez mais imaterial e feroz.


Antonio Negri é filósofo italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros.
Tradução de Roberta Barni.




Texto Anterior: Nabuco é um dos mais citados
Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: O tamanho do nariz
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.