São Paulo, sexta, 1 de janeiro de 1999

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Novos mecanismos refletem a sofisticação humana
Cotidiano ditou maior precisão a relógios

especial para a Folha

Para que medir horas se tudo o que um agricultor precisa saber é quando acordar e trabalhar e quando parar e se recolher? Na cidade, as coisas eram diferentes, mas não muito. O comércio prescinde do relógio, bem como o serviço simples. Em Roma e em Atenas, as clepsidras -rudimentares relógios de água, feitos de um recipiente com um furo no fundo que deixava vazar a água- eram usadas principalmente nas cortes, para regular o tempo de fala dos advogados.
E essas clepsidras já representavam uma grande inovação em relação aos relógios solares, pois marcavam horas iguais, de dia e de noite. Com um relógio solar, as horas têm duração variável, pois são definidas como 1/12 de um dia, e a duração do dia claro é bem maior no verão que no inverno. Os romanos sabiam disso: os soldados do imperador Valentiniano 1° (no poder de 364 a 375) eram instruídos a manter um ritmo de marcha de 20 milhas em cinco "horas de verão", e não, como se diria hoje, em "cinco horas". A uniformização de o que se entende por "hora" ainda teria de esperar mais.
Assim, a história do relógio é espelho da sofisticação das sociedades humanas. Roma caiu e, com ela, no Ocidente, o que se entendia por civilização. Assim, para que, no ano 1000, alguém iria querer relógios que marcassem horas iguais? "Para louvar o Senhor" não parece uma resposta, mas foi o que aconteceu. Foram os monges medievais os pioneiros da introdução do relógio no cotidiano. Mais que introduzir um novo mecanismo, introduziram uma nova maneira de pensar: as atividades sérias, civilizadas, têm de se desenvolver em tempo preciso. Embora não se saiba quem introduziu nos mosteiros a vida regrada pelo relógio, atribui-se o fato a um monge: Guerberto, que se tornaria o papa Silvestre 2° (945-1003).
Já entrando pelo século 14, os relógios mecânicos foram desenvolvidos e incorporados aos campanários das igrejas, e a cidade passou a poder ouvir as horas (os mostradores públicos viriam depois). Os sinos passaram a regular o cotidiano da cidade medieval. O mostrador, hoje tão associado à idéia de "relógio", é atribuído ao engenheiro Jacopo de Dondi, em 1344. A invenção lhe valeu o título de "Horologista", e "Del Orologio" passou a ser nome de sua família.

A Renascença
Todas essas evoluções acontecem em um período intelectual sem precedentes na Europa. Depois de quase mil anos da queda do Império Romano do Ocidente e de um mergulho na barbárie, os pensadores começam a estudar textos clássicos e a natureza, com um espírito de desconfiança com respeito às lições do passado. São os primeiros passos da ciência ocidental.
Durante os séculos 13 e 14, os pensadores começavam a tornar mais precisos seus hábitos intelectuais. Nesse período, é inventado o relógio mecânico -e, com ele, uma precisão quanto a horas trabalhadas, horas de descanso etc.-, adotada a notação arábica de posição -que possibilitava o cálculo no papel- e surgem as especulações de intelectuais como Nicolau de Cusa e Nicolau de Oresme sobre a possibilidade do heliocentrismo, do tempo absoluto e assim por diante.
Esses fatores eram condições necessárias, mas não suficientes, para uma mudança radical de mentalidade que pudesse levar a Europa da Idade Média a uma era de precisão, conquistas materiais e in-telectuais sem precedentes. A faísca que impulsionou de vez a inteligência européia é dada pelas novas técnicas de visualização. Todas essas adições intelectuais e técnicas aliaram-se a três atividades aparentemente desligadas, mas unidas pela idéia de que é possível "ver" processos abstratos, dispondo-os sobre o papel.
Os historiadores recentes situam tais atividades com o desenvolvimento da polifonia -que exigia uma notação mais precisa do que a usada no canto gregoriano-, da perspectiva -que tornava as figuras representações mais ou menos fiéis das coisas, colocando em segundo plano valores subjetivos como importância dos personagens, santidade das ações re-presentadas etc.- e da contabilidade -que colocava sobre o papel o andamento abstrato da economia, usando para isso tabelas recém-desenvolvidas e numerais arábicos.
Essas três atividades, todas nascidas da demanda por precisão em vista da crescente complexidade de cada campo respectivo -do canto gregoriano à polifonia, das transações simples às operações a crédito, da representação baseada em idéias preconcebidas à necessidade de descrever um ambiente tridimensional de forma acessível para qualquer um- estão mais ligadas ao fazer do que ao teorizar; mais às atividades mundanas que às acadêmicas.
Esses são os fatores que prepararam o Ocidente para a revolução científica dos séculos 16 e 17, que fixou parâmetros de precisão e rigor que o homem preza até hoje.
Além disso, de fins do século 15 até o início do 18, a expansão marítima européia colocou novas demandas de precisão sobre o relógio. Para medir a latitude no mar, a tarefa consiste apenas em olhar o céu com um equipamento simples. Medindo a altura de uma estrela qualquer e consultando a data, pode-se saber o quanto se está ao norte ou ao sul de um ponto de referência. Mas o movimento leste-oeste é diferente.
Como saber com certeza a posição atual, se os astros estão à mesma altura? A resposta é: ter um relógio calibrado com a hora do ponto de partida e regular o relógio de bordo com ele. A diferença pode ser então convertida em deslocamento. É preciso observar um fenômeno astronômico, saber a que horas ele ocorre no ponto de referência, consultar o relógio de bordo e fazer a diferença de tempo e calcular a distância.
Mas isso exige mais tecnologia, pois é claro que navios balançam e que relógios de pêndulo não são confiáveis nessas condições. Essa necessidade disparou a criação do relógio mecânico de precisão, fruto do século 18, que não difere muito dos relógios de corda de hoje, nem em termos de mecanismo, muito menos em termos de precisão. (JESUS DE PAULA ASSIS)



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