São Paulo, sexta, 1 de janeiro de 1999

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O fim de milênio e as confusões do apocalipse

MARCELO LEITE
especial para a Folha

A identificação da passagem de um milênio com o apocalipse é produto de uma grande confusão. A fonte do quiproquó está no Novo Testamento, ou melhor, nas interpretações dadas a duas passagens bíblicas famosas (Ap 20, 1-10; e 2Pd 3, 8-10).
As anotações indicam, respectivamente: Apocalipse de São João, capítulo 20, versículos 1 a 10; e Segundas Epístolas de São Pedro, capítulo 3, versículos 8 a 10.
Um roteiro acessível, ainda que um tanto irreverente, de como esses textos se amalgamaram para produzir uma das imagens mais poderosas da cristandade está no primeiro capítulo do livro "Questioning the Millennium", de Stephen Jay Gould. Dele foi extraído o essencial das informações abaixo.
"Apocalipse" é uma palavra de origem grega que tem o sentido de "revelação" e serve para designar profecias carregadas de simbolismo e alegorias. Terminou associada com a idéia de fim do mundo e dos tempos, ou Juízo Final, como na célebre e inflamada passagem do texto joanino ("Bíblia de Jerusalém", Edições Paulinas):
"Vi então tronos, e aos que neles se sentaram foi dado o poder de julgar. Vi também as vidas daqueles que foram decapitados por causa do testemunho de Jesus e da palavra de Deus, e dos que não tinham adorado a Besta, nem sua imagem e nem recebido a marca sobre a fronte ou na mão: eles voltaram à vida e reinaram com Cristo durante mil anos" (Ap 20, 4).
O milênio corresponde, portanto, à era de bem-aventurança que se segue ao apocalipse, depois de o anjo acorrentar e lançar o dragão no abismo. Mas esse trecho não explica por que um intervalo de mil anos foi identificado com aquele que precede o fim do mundo, e não com o que vem depois.
Aí entra o outro texto: "Há, contudo, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: é que para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos, como um dia" (2Pd 3, 8).
Uma interpretação que se fixou no século 3 tratou de reunir as duas passagens numa analogia: a história dos homens na Terra duraria sete "dias" divinos, ou 7.000 anos, dos quais o último dia-milênio corresponderia ao descanso do Senhor na Criação. Ou seja, os mil anos de reinado com Cristo.
O terrível dessa visão é que ela transforma o calendário num roteiro inexorável para o fim do mundo. Permanecia porém o problema nada trivial de descobrir ou fixar a data da Criação, a partir da qual os 6.000 anos pré-apocalipse deveriam ser contados.
Dos cálculos e chutes sobre a iminência do fim do mundo se alimentaram vários movimentos místicos e fanáticos, em uma longa e irracional tradição, dos montanistas do século 2 (que nem falavam em aguardar mil anos pelo Segundo Advento de Cristo) ao Heaven's Gate, mescla de milenarismo com ufologia, que levou 39 seguidores ao suicídio em março de 97.
Duas características marcam o milenarismo. Uma é o questionamento de costumes e leis vigentes, sem importância para quem tem convicção de que o mundo acaba amanhã em labareda e enxofre. A outra é que até agora suas previsões sempre falharam e seus seguidores, em geral, levaram a pior.
Foi assim com a mais notória revolta milenarista do Brasil, liderada por Antônio Conselheiro e dizimada em 1897. O ano de 1900 não era tão redondo quanto 2000, mas serviu para vincular a República com o anticristo e a passagem do século com o final dos tempos. Eis as profecias encontradas em cadernos de Canudos, segundo Euclides da Cunha ("Os Sertões"):
"Em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e a praia virará sertão."
"Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho."
"Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças."
"Em 1899 ficarão as águas em sangue (...)"
"Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes."
A julgar pelo ressurgimento dos temores milenaristas, Conselheiro só acertou na última profecia.


Questioning the Millennium - Stephen Jay Gould. Harmony Books. 190 págs. US$ 17,95.

Na Internet: Centro de Estudos Milenares da Universidade de Boston: http://www.mille.org/



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