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O fim de milênio e as confusões do apocalipse
MARCELO LEITE
especial para a Folha
A identificação da passagem de
um milênio com o apocalipse é
produto de uma grande confusão.
A fonte do quiproquó está no Novo Testamento, ou melhor, nas interpretações dadas a duas passagens bíblicas famosas (Ap 20, 1-10;
e 2Pd 3, 8-10).
As anotações indicam, respectivamente: Apocalipse de São João,
capítulo 20, versículos 1 a 10; e Segundas Epístolas de São Pedro, capítulo 3, versículos 8 a 10.
Um roteiro acessível, ainda que
um tanto irreverente, de como esses textos se amalgamaram para
produzir uma das imagens mais
poderosas da cristandade está no
primeiro capítulo do livro "Questioning the Millennium", de Stephen Jay Gould. Dele foi extraído o
essencial das informações abaixo.
"Apocalipse" é uma palavra de
origem grega que tem o sentido de
"revelação" e serve para designar
profecias carregadas de simbolismo e alegorias. Terminou associada com a idéia de fim do mundo e
dos tempos, ou Juízo Final, como
na célebre e inflamada passagem
do texto joanino ("Bíblia de Jerusalém", Edições Paulinas):
"Vi então tronos, e aos que neles
se sentaram foi dado o poder de
julgar. Vi também as vidas daqueles que foram decapitados por causa do testemunho de Jesus e da palavra de Deus, e dos que não tinham adorado a Besta, nem sua
imagem e nem recebido a marca sobre a
fronte ou na mão: eles
voltaram à vida e reinaram com Cristo durante mil anos" (Ap 20, 4).
O milênio corresponde, portanto, à era de bem-aventurança que se segue
ao apocalipse, depois de o
anjo acorrentar e lançar o
dragão no abismo. Mas esse trecho não explica por que
um intervalo de mil anos foi
identificado com aquele que precede o fim do mundo, e não com o
que vem depois.
Aí entra o outro texto: "Há, contudo, uma coisa, amados, que não
deveis esquecer: é que para o Senhor um dia é como mil anos e mil
anos, como um dia" (2Pd 3, 8).
Uma interpretação que se fixou
no século 3 tratou de reunir as duas
passagens numa analogia: a história dos homens na Terra duraria
sete "dias" divinos, ou 7.000 anos,
dos quais o último dia-milênio corresponderia ao descanso do Senhor na Criação. Ou
seja, os mil anos de reinado com Cristo.
O terrível dessa visão
é que ela transforma o
calendário num roteiro inexorável para o
fim do mundo. Permanecia porém o problema nada trivial de descobrir ou
fixar a data da Criação, a
partir da qual os 6.000 anos
pré-apocalipse deveriam ser
contados.
Dos cálculos e chutes sobre a iminência do fim do mundo se alimentaram vários movimentos
místicos e fanáticos, em uma longa
e irracional tradição, dos montanistas do século 2 (que nem falavam em aguardar mil anos pelo Segundo Advento de Cristo) ao Heaven's Gate, mescla de milenarismo
com ufologia, que levou 39 seguidores ao suicídio em março de 97.
Duas características marcam o
milenarismo. Uma é o questionamento de costumes e leis vigentes,
sem importância para quem tem
convicção de que o mundo acaba
amanhã em labareda e enxofre. A
outra é que até agora suas previsões sempre falharam e seus seguidores, em geral, levaram a pior.
Foi assim com a mais notória revolta milenarista do Brasil, liderada por Antônio Conselheiro e dizimada em 1897. O ano de 1900 não
era tão redondo quanto 2000, mas
serviu para vincular a República
com o anticristo e a passagem do
século com o final dos tempos. Eis
as profecias encontradas em cadernos de Canudos, segundo Euclides da Cunha ("Os Sertões"):
"Em 1896 há de rebanhos mil
correr da praia para o sertão; então
o sertão virará praia e a praia virará
sertão."
"Em 1897 haverá muito pasto e
pouco rasto e um só pastor e um só
rebanho."
"Em 1898 haverá muitos chapéus
e poucas cabeças."
"Em 1899 ficarão as águas em
sangue (...)"
"Há de chover uma grande chuva
de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes."
A julgar pelo ressurgimento dos
temores milenaristas, Conselheiro
só acertou na última profecia.
Questioning the Millennium - Stephen Jay
Gould. Harmony Books. 190 págs. US$ 17,95.
Na Internet: Centro de Estudos Milenares da Universidade de Boston:
http://www.mille.org/
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