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Duas sínteses do Brasil
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha
O fato de "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes
do Brasil", de Sérgio Buarque de
Holanda, terem sido eleitas como
as mais importantes obras de
não-ficção da história da cultura
brasileira não constitui surpresa.
Formuladas nos anos 30, elas produziram, cada uma a seu modo,
descrições tão ricas e inovadoras
da cultura e do povo brasileiros
que, desde cedo, se firmaram entre nós como interpretações incontornáveis da realidade do país.
"Casa Grande e Senzala", de
1933, deixa transparecer a forte influência que recebeu Gilberto
Freyre das teorias antropológicas
em voga nas universidades norte-americanas nas décadas iniciais
do século 20, especialmente da antropologia cultural de Frans Boas.
Primeira parte de uma trilogia, o
livro aborda o período colonial,
promovendo uma espécie de reabilitação da até então malvista
miscigenação do povo brasileiro.
Fundamental para a formulação
dessa perspectiva renovadora é a
distinção que Freyre traça entre
raça e cultura, isto é, entre os
"efeitos das relações puramente
genéticas" e os efeitos das "influências sociais", da "herança
cultural" e do "meio".
É essa distinção que permite ao
sociólogo não só se contrapor ao
discurso eugênico vigente na sua
época, mas também, e sobretudo,
reavaliar o contributo de negros e
mulatos para a "formação da família patriarcal brasileira". "Casa
Grande e Senzala", lançando mão
de número nada desprezível de
fontes primárias e de magistral
técnica expositiva, rejeita o determinismo biológico, analisa os supostos males oriundos da herança
mestiça em termos socioculturais
e acaba por exaltar a "mistura de
raças" como poderoso agente de
democratização social. O livro, em
suma, retira a carga negativa que
pairava sobre a nossa mestiçagem
e a transforma no símbolo maior
da cultura brasileira.
"Raízes do Brasil", por sua vez,
veio à luz três anos após a obra de
Freyre, em 1936. Menos volumoso
e com menor número de referências bibliográficas do que o seu antecessor, o livro busca sua inspiração teórica na história social dos
franceses e na sociologia alemã,
especialmente nos trabalhos do
sociólogo Max Weber. Como nos
explica Antonio Candido no prefácio de 1967, Sérgio Buarque de
Holanda, para analisar as nossas
"raízes", debruça-se sobre a história do Brasil e procura destacar,
nas estruturas social e política do
país, cinco pares: trabalho e aventura; método e capricho; rural e
urbano; burocracia e caudilhismo;
norma impessoal e impulso afetivo -de onde deriva o famoso
conceito de "homem cordial".
Por meio da oposição entre esses
pares, o sociólogo esquadrinha as
vicissitudes da nossa formação
histórica e põe em relevo as contradições e os males que lhe são
inerentes. "Raízes do Brasil",
contrariamente ao clássico de
Freyre, não exalta "certo modo de
ser" do brasileiro. Mais contido,
Sérgio Buarque prefere "torcer"
pelo gradativo abandono das práticas socioculturais herdadas do
passado agrário e escravocrata e
apostar na definitiva urbanização
e democratização do país.
Vai longe o tempo em que essas
duas obras de síntese comportavam uma simples análise crítica. O
Brasil que construímos desde os
anos 30 está demasiado impregnado das descrições da realidade nacional vinculadas nessas obras para que possamos julgá-las com o
afastamento devido. Talvez, hoje,
sejamos capazes tão-somente de
olhar para trás e avaliar que Brasil
é esse que temos edificado com
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda.
Jean Marcel Carvalho França é mestre em sociologia da cultura, doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Imagens do Negro na Literatura Brasileira" (Brasiliense).
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