São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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Duas sínteses do Brasil

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha

O fato de "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, terem sido eleitas como as mais importantes obras de não-ficção da história da cultura brasileira não constitui surpresa. Formuladas nos anos 30, elas produziram, cada uma a seu modo, descrições tão ricas e inovadoras da cultura e do povo brasileiros que, desde cedo, se firmaram entre nós como interpretações incontornáveis da realidade do país.
"Casa Grande e Senzala", de 1933, deixa transparecer a forte influência que recebeu Gilberto Freyre das teorias antropológicas em voga nas universidades norte-americanas nas décadas iniciais do século 20, especialmente da antropologia cultural de Frans Boas. Primeira parte de uma trilogia, o livro aborda o período colonial, promovendo uma espécie de reabilitação da até então malvista miscigenação do povo brasileiro. Fundamental para a formulação dessa perspectiva renovadora é a distinção que Freyre traça entre raça e cultura, isto é, entre os "efeitos das relações puramente genéticas" e os efeitos das "influências sociais", da "herança cultural" e do "meio".
É essa distinção que permite ao sociólogo não só se contrapor ao discurso eugênico vigente na sua época, mas também, e sobretudo, reavaliar o contributo de negros e mulatos para a "formação da família patriarcal brasileira". "Casa Grande e Senzala", lançando mão de número nada desprezível de fontes primárias e de magistral técnica expositiva, rejeita o determinismo biológico, analisa os supostos males oriundos da herança mestiça em termos socioculturais e acaba por exaltar a "mistura de raças" como poderoso agente de democratização social. O livro, em suma, retira a carga negativa que pairava sobre a nossa mestiçagem e a transforma no símbolo maior da cultura brasileira.
"Raízes do Brasil", por sua vez, veio à luz três anos após a obra de Freyre, em 1936. Menos volumoso e com menor número de referências bibliográficas do que o seu antecessor, o livro busca sua inspiração teórica na história social dos franceses e na sociologia alemã, especialmente nos trabalhos do sociólogo Max Weber. Como nos explica Antonio Candido no prefácio de 1967, Sérgio Buarque de Holanda, para analisar as nossas "raízes", debruça-se sobre a história do Brasil e procura destacar, nas estruturas social e política do país, cinco pares: trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo -de onde deriva o famoso conceito de "homem cordial".
Por meio da oposição entre esses pares, o sociólogo esquadrinha as vicissitudes da nossa formação histórica e põe em relevo as contradições e os males que lhe são inerentes. "Raízes do Brasil", contrariamente ao clássico de Freyre, não exalta "certo modo de ser" do brasileiro. Mais contido, Sérgio Buarque prefere "torcer" pelo gradativo abandono das práticas socioculturais herdadas do passado agrário e escravocrata e apostar na definitiva urbanização e democratização do país.
Vai longe o tempo em que essas duas obras de síntese comportavam uma simples análise crítica. O Brasil que construímos desde os anos 30 está demasiado impregnado das descrições da realidade nacional vinculadas nessas obras para que possamos julgá-las com o afastamento devido. Talvez, hoje, sejamos capazes tão-somente de olhar para trás e avaliar que Brasil é esse que temos edificado com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.


Jean Marcel Carvalho França é mestre em sociologia da cultura, doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Imagens do Negro na Literatura Brasileira" (Brasiliense).



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