UOL - FASANO - apresenta




O Restaurante
Fasano e a
Cozinha Italiana de
Luciano Boseggia



Mino Carta


Esta história, que eu intitularia a saga dos Fasano, desmente a tradição de enredos tecidos a partir de um pioneiro de grande porte e muito arrojo. No caso, Vittorio Fasano, de quem ainda falarei em detalhes, bastando dizer, por ora, que, chegado ao Brasil na última década do século passado com a qualificação de mestre confeiteiro, dez anos depois se permitia importar o primeiro Isotta Fraschini a trafegar por São Paulo. Então, o que costuma acontecer em seguida a notáveis patriarcas? Os filhos começam a baixar a bola, os netos são caricaturas do avô.

A saga dos Fasano segue por outro rumo, embora rica em incidentes, como será provado e como manda o figurino do gênero. A linhagem fundada por Vittorio atingiu a quarta geração e, mal a bola ameaça baixar, já volta às alturas.

Vamos visitar agora o restaurante Fasano, rua Haddock Lobo, São Paulo, 1993 - qualquer coisa como cem anos depois da chegada de Vittorio e exatos noventa depois da inauguração do primeiro Fasano. À praça Antonio Prado, São Paulo, 1903. Estamos em um palazzo situado entre a Renascença e o século XX, mas nele a memória de outros tempos decantou nas receitas mais modernas, nos cardápios mais atuais, na comida mais contemporânea. Sem traições ao sabor, à consistência, ao prazer. Eis aí o preito emocionado de Rogério Fasano, bisneto de Vittorio, à raiz italiana. A homenagem que nasce do gesto natural, diria orgânico, para colocar, no meio destas estruturas solenes, o prato que aguça os melhores humores sem pôr em risco frágeis estruturas humanas situadas entre o fígado e a alma. Aí, é bom que se diga, não entra em cena apenas a paixão de Rogério. Porque este Fasano da Haddock Lobo é o resultado da formidável aliança que se estabeleceu entre o bisneto e o neto, mistura de paixões diversas mas igualmente decisivas. Em Rogério canta a estética da chama italiana. Em Fabrizio se impõe um lado vai-que-dá, um ímpeto de desbravador americano. Algo autêntico, espontâneo, possivelmente avivado por um master em business nos Estados Unidos - um pendor que Fabrizio passou ao filho primogênito, também Fabrizio, paradoxalmente apresentado aos íntimos como Fabricinho, apesar dos seus 1,93 de altura.

Convenhamos, em todo caso, que certas uniões podem ser poderosas, ainda mais se dá para convocar um arquiteto como Gil Germain Donnat e um chef como Luciano Boseggia para colaborarem na realização do projeto. Fabrizio entrou como manager, encampou o sonho alheio e o tornou seu próprio.

Hoje Rogério se pergunta: "Se o dinheiro fosse meu, eu teria sido capaz?" Donnat entrou com a cultura e o conhecimento específicos. Adicionem a sensibilidade de quem sabe dos seus dias contados e ainda moço, moço demais, pensa em realizar a obra da sua vida. Boseggia, que já estivera com Rogério no Fasano da rua Amaury, trazido do restaurante Vecchia Lugana, norte da Itália (merecedor de respeitável pontuação do guia do L¹Espresso), também entrou com cultura e conhecimento específicos. E adicionem a sensibilidade de quem vive esplendidamente a vida, sorvendo-a a cada momento e servindo-a com todo respeito pela saúde alheia. Rogério entrou com a idéia e a batuta.

Ah, sim. Faltou alguém nesta parceria. O espírito do filho de Vittorio, vovô Ruggero, quem mais haveria de ser? "Ele adoraria ver isso aqui², garante o neto, certo de que o Fasano da Haddock Lobo é a conseqüência inevitável dos Fasano que o precederam. E agora, ao refletir sobre o personagem mais recente da saga, Rogério, justamente, vale observar que o neto reencontra o avô mais em si mesmo do que dentro de si mesmo. E explico. Há lugar para Ruggero na memória de Rogério, está claro, embora o neto tivesse somente 6 anos quando o avô morreu, em 1968. Mas o que toca Rogério é, sobretudo, topar com Ruggero num gesto seu, numa atitude, num momento de fé. Enfim, no seu próprio comportamento. Rogério está convencido de que, muitas vezes nos últimos anos, ele fez o que faria Ruggero no esforço de recompor a empresa familiar. Não se aconselham dúvidas a respeito.

Como saga digna deste nome, a dos Fasano é ciclotímica. Vittorio, o confeiteiro, logo que chegou da Itália - possivelmente de Gênova - empregou-se na então renomada confeitaria Castelões, na Líbero Badaró, quando a cidade não era capaz de imaginar o surgimento, ali mesmo, do prédio Martinelli, no topo de um suave mergulho na direção do vale do Anhangabaú. Poucos anos bastaram a Vittorio para que fundasse o seu próprio estabelecimento, juntamente com um sócio, a Brasserie Paulista. Bem em frente do Castelões. Mais um punhado de anos, o sócio tomou outro rumo, e Vittorio fez da Brasserie Paulista o primeiro Fasano, o restaurante mais chique da cidade.

Em 1913, ao ficar viúvo da belíssima Maria, nonna Marietta, Vittorio tinha seis filhos e uma fortuna respeitável, para a qual contribuíra a atividade paralela de comerciante de café. Ele era um comedido, maciço cavalheiro dotado de invejável competência no uso de coletes e polainas. Os filhos estudavam na Itália e Vittorio passava com eles, na terra natal, quatro meses ao ano, sem esquecer de atravessar o mar juntamente com sua benemérita Isotta Fraschini.

Aqui o urdidor de uma boa história colocaria um momento turvo, o incidente, a crise. Na verdade, houve. Os fatos, às vezes, revelam pendores romanescos. Quando Vittorio morreu, em 1923, faltou aos filhos mais velhos, que já tinham completado seus estudos e estavam de volta, capacidade para ir em frente com imaginação própria. O negócio sobrou para o cunhado, Valente Giannini. Casado com a filha mais velha de Vittorio, Nena, Giannini comprou a parte de todos os Fasano, inclusive a de Ruggero, o temporão nascido em 1907.

Alheio às questões que inquietavam a família, o adolescente Ruggero cursava a Escola Militar de Moncalieri, arredores de Turim, célebre instituição piemontesa destinada a formar guerreiros e, eventualmente, um dos mais relevantes restauranteurs paulistanos de todos os tempos. Mas Ruggero só retornaria à terra catorze anos depois da morte do pai e levaria mais dez para reassumir o comando da empresa familiar e para devolvê-la ao fastígio alcançado por Vittorio. E, até, para chegar mais longe.

Ruggero regressou, em 1937, de família constituída. A mulher, Ida. Os filhos Fabio e Fabrizio, de 4 e 2 anos respectivamente. Aqui, abram-se parênteses. Ruggero e Ida, um grande amor. Ele dedicou-lhe uma fervorosa paixão, por tudo aquilo que ela representou enquanto estiveram juntos e por tudo aquilo que representaria depois que ele se foi. Assim Ruggero compôs a receita da sobrevivência. Até 1992, na diligente evocação que Ida fazia dele, para encanto dos netos, adeptos de um programa especialmente feliz, intitulado falar do nonno. Ida trouxe à família o fermento da estatura de ex-modelo, leveza de movimentos, um tom muito pacato de dizer as coisas. Trouxe, além disso, as receitas do arroz com açafrão e dos escalopes ao Marsala que permanecem intocadas na memória gustativa do neto Rogério e freqüentemente o inspiram nas suas incursões até o fogão.Com a retaguarda de Ida, o jovem Ruggero, aquele aprumado cavalheiro formado em Moncalieri, ex-ajudante de ordem do conde Galeazzo Ciano (o desafortunado genro de Mussolini que acabaria sendo fuzilado por seu próprio sogro), não hesitou em abrir uma banca de aves e ovos no Mercado Municipal, depois de uma tentativa malsucedida de trabalhar como caixa do Fasano de Valente Giannini.

Ida, que já havia desfilado apresentando as suas próprias criações, passou a costurar para as damas da elite paulistana, enquanto o filho Fabrizio cuidava da entrega das encomendas e apreciava sobretudo as gorjetas da condessa Crespi e da senhora Selmi Dei. Tal é a têmpera dos Fasano, um pessoal que confia no taco e que não perde a elegância em qualquer circunstância. Além de tudo, o ambiente do Mercado Municipal, para quem tem olhos perceptivos, é leve e grandioso como o de uma gare parisiense. De todo modo, o sobrenatural está sempre à espreita. Então, reparem. Sobre o moço Ruggero de alma forte caiu o olhar de dona Judite Amato, volumosa (mais de cem quilos), dona de mercearia, versada nas coisas do Além. Versada, não. Habilitada pela natureza. Ocorre que dona Judite (cujo sobrinho um dia viraria presidente da FIESP, faltando saber se à época o evento estava escrito nas estrelas) deu para receber mensagens do patriarca Vittorio. O qual recomendava ajudar Ruggero, de sorte que Judite, senhora de alguns recursos e sempre inclinada ao atendimento de suas vozes, emprestou ao amigo 500 mil cruzeiros, importância necessária para restabelecer o antigo negócio familiar.

E fundar o Fasano da rua Vieira de Carvalho, primeiro passo da retomada. Em 1947, 500 mil cruzeiros equivaliam a 30 mil dólares, mas Judite, mesmo depois do sucesso que logo sorriu a Ruggero, não quis o dinheiro de volta. Bastavam-lhe os juros. Em 1968, pouco antes de morrer, Ruggero lembrou a Fabrizio: "Precisamos pagar a Judite.² Portentosa Judite, de influência determinante. Melhor que influência: intermediação. Melhor ainda: intercessão. Porque, entendam, pela boca de Judite, Vittorio ditava a estratégia. Não houve empreendimento, na vida da empresa de Ruggero Fasano, que não fosse inaugurado no dia e hora indicados pelo patriarca, captado pelas antenas mediúnicas de Judite.

O espírito dos ancestrais deve ter seu peso nas sagas. Protegido por Vittorio, Ruggero tomou conta da cidade, multiplicou restaurantes, salões de festas, casas de chá, rotisseries e confeitarias até instalar a obra definitiva, o Jardim de Inverno do Conjunto Nacional, bem em frente ao local em que nascera cinqüenta anos antes, a chácara paterna da avenida Paulista, esquina da rua Augusta. O fausto do atual restaurante da Haddock Lobo, aqui cabe dizê-lo, não é a novidade trazida pela quarta geração.

De verdade, não passa da confirmação do estilo Fasano, arremate da tradição familiar. O Fasano da Paulista, do bar do térreo aos salões plantados sobre o terraço do Conjunto Nacional, incluindo restaurante e boate, e espaço até para um fumoir, era o feudo mais grandioso do senhor dos restauranteurs paulistanos da época, mas o Fasano da Antonio Prado, reconstituído em 1952 como uma espécie de revival art-déco, era arquitetonicamente o mais ousado.

Audácia, sempre audácia. Não se sabe ao certo de quem partiu a recomendação, se de Napoleão Bonaparte, ou do revolucionário Danton, ou do sagaz Talleyrand. Bem que poderia ser o lema Fasano, entendendo-se por audácia a disposição para enfrentar corajosamente, atiradamente, os momentos bons e os maus. Quando o centro da cidade começou a se deteriorar e a decadência não poupou o império de Ruggero - em 1963 ele venderia a empresa para uma engarrafadora de gás de uso doméstico - o herdeiro Fabrizio, que trabalhava com o pai e era seu sucessor natural, espanou a coragem dos tempos difíceis e alugou carros da Auto-Drive e vendeu terrenos em Campos do Jordão. Ensaiou, inclusive com êxito, uma carreira de contato de publicidade e administrador editorial, até montar em 1966 uma empresa de bebidas que revolucionou arraigados hábitos nativos. Baseado no uísque que batizou Old Eight. O simpático Old Eight hoje velho de guerra, que Fabrizio popularizou ao estabelecer uma audaciosa cabeça-de-ponte com o passado, digamos assim. Ele abarrotava o seu próprio carro de caixas de uísque e saía, entre a noitinha e a madrugada, para vendê-las, diretamente, aos companheiros do ex-Fasano que tinham virado gerentes e maîtres das melhores casas da cidade. Foi um dia D tão vitorioso quanto o desembarque na Normandia - e sem mortos e feridos. A história desta indústria de bebidas, que cresceu muito e ganhou sócios, tem seus altos e baixos, como costuma acontecer. Na ficha de Fabrizio aparece inclusive uma nova incursão pelo mundo editorial, com a sua participação na fundação da Editora Três, na qual ele foi um dos vértices do triângulo formado com Domingo Alzugaray e Luis Carta.

Mas é certo que, no negócio iniciado por Vittorio e continuado por Ruggero, o herdeiro natural da tradição familiar passou a ser Rogério, bisneto do patriarca. O qual sonhava em ser diretor de cinema e alimentava o sonho fazendo um curso em Londres quando foi convocado pelo pai, há treze anos (ele tinha dezenove), para montar um restaurante de nome francês, a convite do Grupo Eldorado. À época a noção que Rogério tinha de restaurantes inspirava-se no seu conhecimento de casas indianas onde, para impressionar garotas, ele pedia comida hot. O Jardin Gastronomique, devotado à nouvelle cuisine, não é um episódio épico na saga dos Fasano. Já o Fasano da rua Amaury, segundo capítulo da história do restauranteur Rogério, foi a semente do restaurante da Haddock Lobo. Inclusive, ao criar a parceria com Donnat e Boseggia.E agora, finalmente, chegamos à última etapa.

De certa maneira, à reconstituição da casa paterna. Templo da cozinha italiana, revisitada, eventualmente estilizada, mas fiel às origens. Azeite extravirgem. Sabores genuínos preservados com desvelo. Variedade de gêneros inigualável. Larga articulação do cardápio em três pratos: antipasto, primo e secondo. Amor pela tradição, respeito comovido, sem diminuir em nada a margem de criação. A dupla Rogério-Luciano nada de braçada neste mar. O chef lombardo-vêneto é a garantia de precisão da receita, das dosagens, dos pontos de cozimento. Da invenção, freqüentemente.

O neto de Ruggero é a garantia de afinação entre os fogões e o salão, a bem da pompa do ritual, do fascínio do instante fugidio, da sedução do ofício e da felicidade geral dos fregueses. E não se subestime, entre os oficiantes, a presença de Andrea, a irmã mais nova de Fabricinho e Rogério, a Deca tão parecida com nonna Ida, a postos para pôr ordem na retaguarda, o que significa lidar com números e conter fantasias.

E há outra personagem que trafega neste palco, sempre discreta, embora lhe caiba um papel central, próprio da mamma, ainda mais quando dotada de uma vigorosa herança índia. Daisy funciona admiravelmente dentro da saga tanto como incentivadora, há trinta anos, das surtidas do moço Fabrizio em busca de um melhor destino quanto, nos dias de hoje, como degustadora especial dos cardápios do filho Rogério, devidamente credenciada a exercícios críticos de rara eficácia.Eis aqui o feudo mais recente dos Fasano. A etapa atual de uma história familiar que se confunde com a história da cidade. Mas a saga dos Fasano continua.


Apresentação Rógerio Fasano

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