Publicidade


    UOL HUMOR
Todo dia novidades em tiras, charges e quadrinhos de Glauco, Angeli, Laerte e Millôr


    

O ano 1000

A aproximação do ano 2000 parece a época propícia para o surgimento de antigas tradições religiosas como a escatologia -parte da teologia que trata do Juízo Final, da volta dos mortos do fim do mundo- e o milenarismo. Derivada da escatologia, a filosofia milenarista acredita que o mundo está dividido em ciclos de mil anos, ao final dos quais haverá um julgamento de Deus sobre as realizações do homem durante o período.

Para quem acredita no fim dos tempos, a passagem do ano tem algumas opções. Um hotel em Israel, por exemplo, anunciou um pacote de ano novo com uma vista "privilegiada" do fim do mundo. Não há contudo nenhuma garantia de que haverá algo para ser visto: apesar das especulações, o único desastre confirmado até agora é o Y2K, o bug dos computadores.

Não sendo possível saber o que vem por aí, resta-nos voltar ao passado para ver o que aconteceu na única virada do milênio que existiu até o hoje -o ano 1000. Falar do ano 1000, no entanto, é falar sobre onde o ano 1000 existiu: no reduzido mundo cristão, sobretudo na Europa medieval, marcada pelo sistema feudal e pelo imenso poder espiritual da Igreja Católica sobre os seus fiéis.

O livro mais importante que trata do ano 1000 na Europa pertence ao historiador francês Georges Duby ("O Ano Mil"). Um dos mais renomados estudiosos sobre o período medieval, Duby pesquisou todos os textos existentes sobre o ano 1000 na Europa, a maioria textos em latim escritos pelos religiosos da época. A conclusão categórica do historiador: não aconteceu quase nada.

Duby encontrou apenas um texto que descrevia tragicamente o ano 1000: trata-se do relato de um certo Sigeberto de Gembloux. De acordo com ele, "viram-se nesta época muitos prodígios, um terrível tremor de terra, um cometa de rasto fulgurante; a irrupção luminosa invadiu até ao interior das casas e, através de uma fratura do céu, apareceu uma imagem de uma serpente". A descrição é terrível, mas o autor do texto viveu no século 12, portanto não foi testemunha do que descreveu. Pior: tampouco cita a fonte de onde tirou as informações.

Mais tarde, já no século 16, a descrição improvável de Glemboux convenceu alguns religiosos, que ampliaram o relato, descrevendo a passagem do milênio como sendo de grandes cataclismas e pânico generalizado: "violentos tremores de terra sacudiram toda a Europa, destruindo por todo o lado edifícios sólidos e magnifícos. Nesse mesmo ano apareceu no céu um horrível cometa. Muitos dos que o viram acreditaram que se tratava do anúncio do últimos dias..."

Duby novamente duvida. O relato mais explícito de que houve algo próximo a um pânico foi escrito pelo abade de Saint-Benoît-sur-Loire, Abbon, em 998. O abade recorda um pequeno episódio que aconteceu em torno de de 975: "A propósito do fim do mundo, ouvi pregar ao povo numa igreja de Paris que o Anti-Cristo viria no fim do ano mil e que o Juízo Final se seguiria pouco depois. Combati vigorosamente essa opinião, apoiando-me sobre os Evangelhos, o Apocalipse e o Livro de Daniel". Nenhuma catástrofe, ao que parece. A pesquisa de Duby encontrou um período tão calmo que a sua cronologia sobre a época -ele pesquisou documentos de 981 a 1039-, não contém um fato sequer no ano 1000 que fosse digno de nota.

Fonte: Georges Duby, O Ano Mil. (Publicado pela editora portuguesa Edições 70)