NxW

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THOMAS E A CÁPSULA DO TEMPO
Em seu novo trabalho, 'NxW', que estréia quinta, o diretor Gerald Thomas toma como ponto de partida a discordância entre Nietzsche e Wagner para discutir o mundo contemporâneo.

matéria:

GERALD THOMAS DISCUTE VALORES CONTEMPORÂNEOS
Diretor reflete sobre o efêmero em peça que estréia na quinta-feira no Sesc Ipiranga

João Luiz Sampaio*
 
Em 'N x W', o diretor Gerald Thomas (ao lado) comanda os integrantes da Companhia Ópera Seca (acima) em um espetáculo cuja intenção é discutir a fugacidade e os valores transitórios do mundo atual, simbolizados pelo universo da moda. (no alto)

Palco do Sesc Ipiranga, 18 horas. Enquanto, em cena, uma profusão de luzes e sons indistintos soma-se ao movimento dos atores (todos membros da Companhia Ópera Seca), Gerald Thomas observa. E rege os atores como se tivesse a sua frente um conjunto orquestral. Insiste na marcação dos gestos, na intensidade dos movimentos. Trata-se de sua mais nova produção em terras brasileiras: N x W, que tem como ponto de partida a discordância entre o filósofo Friedrich Nietzsche e o compositor Richard Wagner. A intenção: descobrir o mundo moderno afundado no efêmero e no vazio. No palco, as atrizes desfilam como modelos em uma passarela. São Isoldas presas no universo da moda, no mundo fashion. Thomas acende um Gitane e, após a primeira tragada, apaga o cigarro em um dos muitos copos vazios de água a sua frente. A música, aos poucos, cessa e ele interrompe o ensaio. No ar ficam resquícios da crítica ao mundo contemporâneo, à fugacidade, como na moda, por curtos períodos de tempo. Em N x W, Tristão, imortalizado na partitura da ópera, deixa o mundo das lendas e converte-se em um prisioneiro de Auschwitz durante a 2ª Guerra Mundial, em meio a um julgamento que tem Nietzsche como promotor. A intenção é, por meio dessa alegoria, recriar um ambiente em que se possa discutir a superficialidade do mundo atual em oposição aos valores permanentes presentes na ópera. Em especial nas composições de Wagner, que deixaram ao homem do século 20 uma infinidade de elementos, musicais e políticos, a serem discutidos. "Wagner é gigantesco, foi artista e filósofo prático e sua arte transcende o entretenimento." Esse é, aliás, na opinião de Thomas, o grande problema do artista contemporâneo. "Do mais comunista ao mais fascista, todos invejam seu poder de manipulação por meio da arte." Apesar de N x W ser ambientado em Auschwitz, Thomas prefere não empregar o termo campo de concentração. "Trata-se de uma cápsula do tempo na qual o mundo fashion guia todas as atitudes, colocando em contraponto os elementos efêmeros da vida atual com algo estóico e espartano, presente na ópera", diz, explicando aquilo que ele chama de "leitmotiv" de seu trabalho. Thomas ressalta, porém, que N x W não tem a intenção de discutir a ideologia presente tanto no trabalho de Wagner como no de Nietzsche. "N x W é uma equação que tem como resultado o conflito entre Nietzsche e Wagner, ou seja, parto dos dois para discutir a fragmentação do mundo contemporâneo."

Divergência
As razões que explicam o desentendimento entre os dois alemães são muitas e diversas. No entanto, um dos principais pontos de divergência é a busca de Wagner por um estilo de arte total, que se apoiava no romantismo alemão. Para Nietzsche, preocupado com o rompimento com o romantismo, tal concepção parece fruto de um gosto questionável, corrompido. "Wagner adianta o que se esconde por trás da relação entre a arte e a política e a manipulação e a arte, algo que hoje é evidente na ação da TV e da Internet", diz Thomas, para que Nietzsche não entendeu totalmente Tristão e Isolda. "Ele não viu que, na ópera, Wagner já adiantava elementos de uma música fragmentária, atonal, que vai influenciar muitos artistas do século 20, como Schoenberg." A música de N x W foi composta por Arrigo Barnabé e Borut Krzisnik (descoberto durante os trabalhos de montagem dirigidos por Thomas de Tristão e Isolda, em Weimar, na Alemanha, quando, curiosamente, atuava como carpinteiro) e resulta de uma mistura de referências a compositores contemporâneos como Berio, Henze e Penderecki. Segundo Thomas, no entanto, os componentes básicos são o Prelúdio, que abre a ópera de Wagner, e o Liebestod, cena da morte de Isolda que a encerra. Trechos que, para Thomas, simbolizam o surgimento das raízes da música moderna.

Obsessão
N x W não é a primeira incursão de Thomas no universo da ópera de Wagner, em especial de Tristão e Isolda. Há alguns anos, ele dirigiu, em Weimar, na Alemanha, uma montagem que também transportava a ação da Idade Média para o século 20, maisespecificamente para um cinema prestes a ser demolido. Ali, também estava fortemente presente a crítica ao mundo fashion. No local onde estava localizado o cinema, construiu-se um palco para um desfile de moda. Detalhe: Tristão, à beira da morte, cantava seus últimos instantes de vida em uma torre de controle de iluminação. A montagem fica no repertório da casa até 2001. Da mesma forma ele inovou com sua montagem de O Navio Fantasma, em 1989, no Rio. Enquanto a cena desenvolvia-se na frente do palco, uma réplica do Muro de Berlim, ao fundo, em pleno período de Guerra Fria, servia de referência para um questionamento sobre a situação da Alemanha dividida. "Dessa construção surge a conexão entre ideologia, política e arte que me interessa."

Brasil
Última montagem de ópera do polêmico diretor no Brasil, O Navio Fantasma chocou, segundo Thomas, porque o público brasileiro possui uma visão atrasada da ópera e sua função. "Aqui, no Brasil, ópera é uma grande bobagem, um pretexto para algumas pessoas vestirem trajes de gala e irem ao teatro." Já na Europa, o público se mostra mais aberto. "Lá, está presente a preocupação de provocar o público e criar, sempre, algo novo."

Para filósofo, música ficou doente
Segundo Nietzsche, Wagner criou um tipo de música que se apóia no poder de sedução A relação entre o filósofo Friedrich Nietzsche e Richard Wagner foi bastante complicada. Sabe-se que, desde cedo, os dois mantiveram fortes de laços de amizade. No entanto, ao longo dos anos, na medida em que o trabalho dos dois tomava rumos diferentes, a relação de amizade convertia-se numa briga não apenas pessoal como, antes de tudo, ideológica. Curt Paul Janz, autor da mais conceituada biografia do filósofo, um volume de quase 2 mil páginas editado em 1981, analisa o relacionamento dos dois a partir de três diferentes concepções. A primeira diz respeito ao campo pessoal: Nietzsche e Wagner não eram da mesma geração, uma vez que o filósofo nasceu quando Wagner já tinha 31 anos. E Wagner não era uma pessoa fácil: nutria um desprezo célebre pelos demais artistas (é importante lembrar que Nietzsche também era compositor). Outro ponto, no campo filosófico e religioso, faz alusão ao rompimento de Nietzsche, aos 17 anos, com o cristianismo, defendido por Wagner em ópera como Parsifal, em que ele introduz uma personagem judia, Kundry, como símbolo da imoralidade. Por fim, Janz discute a divergência histórico-espiritual: segundo ele, Nietzsche, apesar de romântico em seu trabalho como compositor, colocava-se, como pensador, na ruptura entre o romantismo alemão, encarnado em Wagner, e o pensamento moderno. De qualquer forma, em alguns de seus escritos, Nietzsche demonstra um profundo desgosto pela música de Wagner, para ele exemplo de uma arte de massa a serviço da manipulação. Tanto no âmbito político e artístico, como no pessoal, ele empresta sua impressionante habilidede dissertativa à crítica em relação ao trabalho de Wagner.

Crítica
Conheça a seguir dois trechos de Nietzsche contra Wagner que o próprio filósofo retirou da versão final da obra, em tradução de Paulo César de Souza para a Companhia das Letras:

"Wagner é uma grande corrupção para a música. Ele percebeu nela um meio para excitar nervos cansados - com isso tornou a música doente. Não é pouco seu talento na arte de aguilhoar os totalmente exaustos, de chamar à vida os semimortos. Ele é o mestre do passe hipnótico, mesmo os mais fortes ele derruba como touros. O sucesso de Wagner - seu sucesso junto aos nervos e em conseqüência junto às mulheres - transformou o mundo dos músicos ambiciosos em seguidores da sua arte oculta. E não só os ambiciosos, também os sagazes... Hoje se faz dinheiro apenas com música doente; nossos grandes teatros vivem de Wagner."
"Meu fato, meu petit fait vrai (pequeno fato verdadeiro) é que já não consigo respirar direito, quando essa música me atinge; logo o meu pé se irrita com ela e se revolta (...) Mas também não protesta meu estômago? Meu coração? Minha circulação? Não se turvam minhas vísceras? (...) Para ouvir Wagner necessito de pastilhas Gérandel."

* (O Estado de São Paulo - Caderno 2 - Ano XV - Nº 4.916 - De 18 de Julho de 2000)