São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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O mundo desencantado

VINICIUS MOTA
da Redação

O que um livro publicado em 1904, que trata basicamente de características de um movimento religioso pouco influente por aqui, o protestantismo -movimento de contestação dos dogmas e da organização da Igreja Católica, no século 16-, vem fazer no topo de uma lista das "melhores obras de não-ficção do século" de um jornal brasileiro?
Em "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", Weber (Erfurt , Alemanha, 1864 - Mônaco, 1920) enxerga uma imbricação histórica que fez confluir uma prática religiosa ascética, a "ética protestante", e o que ele chamou de "espírito do capitalismo" -o impulso ao cálculo econômico minucioso, ao reinvestimento do lucro na empresa, à contenção dos desperdícios de toda forma etc.
A racionalização, ou o "desencantamento do mundo" -outro traço marcante do pensamento de Weber- define o desenvolvimento histórico do Ocidente, no qual os meios mágicos extra-racionais foram dando lugar aos meios metódicos e calculados em todos os setores sociais. A racionalização atingiu também o domínio do Estado moderno, criando a dominação baseada em leis abstratas e efetivada por um corpo técnico-administrativo especializado, que Weber denomina burocracia. Esse "tipo ideal" de dominação política, denominado "racional-legal", é detidamente analisado no livro "Economia e Sociedade", sua obra máxima, publicada em 1920, e em terceiro lugar na votação do Mais!.
É dessa forma que o sociólogo pode falar de um processo de racionalização que ocorre também na esfera da religião. Aqui, a forma específica do fenômeno é o progressivo abandono do misticismo -experiência em que a divindade se mistura ao corpo do indivíduo- em favor de uma prática ascética que leva à separação definitiva entre homem e Deus. O autor alemão argumenta que esse processo é levado a cabo com o protestantismo europeu, mais especificamente com o calvinismo -menção ao reformador João Calvino (1509-1564).
A doutrina calvinista alia a idéia de vocação formulada por Martinho Lutero (1483-1546) -o preceito pelo qual se transforma o trabalho terreno em via de salvação da alma- com a idéia de predestinação: antes do início dos tempos, Deus decidiu os que estão fadados à salvação e os que estão condenados à danação, não restando ao homem nenhuma alternativa de reversão "mágica" de sua sentença. Deus, para o puritanismo calvinista, não se comunica com os homens.
A grande questão religiosa para os puritanos passa a ser, então, a de saber quais os sinais perceptíveis pelos quais se pode saber se uma alma está predestinada à salvação ou à perdição.
O desenvolvimento do calvinismo veio a solucionar duplamente essa inquietação: em primeiro lugar, considerou que a perda da autoconfiança é sinal de falta de fé (característica dos condenados). Em segundo lugar, para alcançar a autoconfiança o calvinismo recomendava uma dedicação intensa e metódica a uma atividade profissional.
"A conduta moral do homem médio foi, assim, despojada de seu caráter não-planejado e assistemático, e sujeita, como um todo, a um método consistente", escreve Weber.
Em tal sistema de crenças, o lucro foi entendido como frutificação do trabalho, sinal de predestinação à salvação, desde que não utilizado com usura, para satisfação de prazeres da carne, o que, na prática, resultou num estímulo para a reaplicação do excedente na produção. Tudo o que o trabalho -considerado fim em si mesmo, "vocacional"- gera é sinal de aprovação divina, que deve ser novamente aplicado ao ciclo de produção para gerar mais trabalho, mais lucro, mais sinais de graça.
Nesse ponto a ética religiosa protestante, que fazia parte de todos os momentos da vida do crente, toca no "espírito do capitalismo", o impulso para a empresa racional, metódica e permanente, e pode ser entendida como sua causa, não a única, por certo.
Voltando à pergunta do início do texto, é preciso dizer que o modelo capitalista -incentivado em seus primórdios pela ascese protestante- hoje subsiste despojado de fundo religioso. "O puritano queria se tornar um profissional, e todos tiveram que segui-lo", diz Weber.
Segundo o sociólogo, o mundo que os protestantes ajudaram a criar tornou-se dominante.


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