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O mundo desencantado
VINICIUS MOTA
da Redação
O que um livro publicado em
1904, que trata basicamente de características de um movimento religioso pouco influente por aqui, o
protestantismo -movimento de
contestação dos dogmas e da organização da Igreja Católica, no
século 16-, vem fazer no topo de
uma lista das "melhores obras de
não-ficção do século" de um jornal brasileiro?
Em "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", Weber
(Erfurt , Alemanha, 1864 - Mônaco, 1920) enxerga uma imbricação
histórica que fez confluir uma
prática religiosa ascética, a "ética
protestante", e o que ele chamou
de "espírito do capitalismo" -o
impulso ao cálculo econômico
minucioso, ao reinvestimento do
lucro na empresa, à contenção dos
desperdícios de toda forma etc.
A racionalização, ou o "desencantamento do mundo" -outro
traço marcante do pensamento de
Weber- define o desenvolvimento histórico do Ocidente, no qual
os meios mágicos extra-racionais
foram dando lugar aos meios metódicos e calculados em todos os
setores sociais. A racionalização
atingiu também o domínio do Estado moderno, criando a dominação baseada em leis abstratas e efetivada por um corpo técnico-administrativo especializado, que
Weber denomina burocracia. Esse
"tipo ideal" de dominação política, denominado "racional-legal", é detidamente analisado no
livro "Economia e Sociedade",
sua obra máxima, publicada em
1920, e em terceiro lugar na votação do Mais!.
É dessa forma que o sociólogo
pode falar de um processo de racionalização que ocorre também
na esfera da religião. Aqui, a forma específica do fenômeno é o
progressivo abandono do misticismo -experiência em que a divindade se mistura ao corpo do
indivíduo- em favor de uma prática ascética que leva à separação
definitiva entre homem e Deus. O
autor alemão argumenta que esse
processo é levado a cabo com o
protestantismo europeu, mais especificamente com o calvinismo
-menção ao reformador João
Calvino (1509-1564).
A doutrina calvinista alia a idéia
de vocação formulada por Martinho Lutero (1483-1546) -o preceito pelo qual se transforma o
trabalho terreno em via de salvação da alma- com a idéia de predestinação: antes do início dos
tempos, Deus decidiu os que estão
fadados à salvação e os que estão
condenados à danação, não restando ao homem nenhuma alternativa de reversão "mágica" de
sua sentença. Deus, para o puritanismo calvinista, não se comunica
com os homens.
A grande questão religiosa para
os puritanos passa a ser, então, a
de saber quais os sinais perceptíveis pelos quais se pode saber se
uma alma está predestinada à salvação ou à perdição.
O desenvolvimento do calvinismo veio a solucionar duplamente
essa inquietação: em primeiro lugar, considerou que a perda da autoconfiança é sinal de falta de fé
(característica dos condenados).
Em segundo lugar, para alcançar a
autoconfiança o calvinismo recomendava uma dedicação intensa e
metódica a uma atividade profissional.
"A conduta moral do homem
médio foi, assim, despojada de seu
caráter não-planejado e assistemático, e sujeita, como um todo, a
um método consistente", escreve
Weber.
Em tal sistema de crenças, o lucro foi entendido como frutificação do trabalho, sinal de predestinação à salvação, desde que não
utilizado com usura, para satisfação de prazeres da carne, o que, na
prática, resultou num estímulo
para a reaplicação do excedente na
produção. Tudo o que o trabalho
-considerado fim em si mesmo,
"vocacional"- gera é sinal de
aprovação divina, que deve ser
novamente aplicado ao ciclo de
produção para gerar mais trabalho, mais lucro, mais sinais de graça.
Nesse ponto a ética religiosa
protestante, que fazia parte de todos os momentos da vida do crente, toca no "espírito do capitalismo", o impulso para a empresa
racional, metódica e permanente,
e pode ser entendida como sua
causa, não a única, por certo.
Voltando à pergunta do início
do texto, é preciso dizer que o modelo capitalista -incentivado em
seus primórdios pela ascese protestante- hoje subsiste despojado de fundo religioso. "O puritano queria se tornar um profissional, e todos tiveram que segui-lo", diz Weber.
Segundo o sociólogo, o mundo
que os protestantes ajudaram a
criar tornou-se dominante.
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