São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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"Ulisses", de James Joyce, lidera a relação dos melhores romances escritos desde 1900, seguido de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, e "O Processo", de Franz Kafka
O dia que resume o século

ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!

Nem 16 de junho de 1944 (o Dia D), nem 20 de julho de 1969 (a primeira vez que um homem pisou na Lua): do ponto de vista literário o dia mais relevante do século é 16 de junho de 1904, data exata que o escritor irlandês James Joyce escolheu para situar todas as peripécias em Dublin de Leopold Bloom, seu "herói" em "Ulisses".
O livro foi escolhido como o mais importante do século pelos dez críticos e escritores convidados pela Folha para elaborar a lista dos cem melhores romances publicados desde 1900 e também dos 30 mais importantes romances brasileiros de todos os tempos -relação em que venceu "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa (leia na pág. 5-8). Apesar de o século ter começado em 1901, o Mais! aceitou indicações desde 1900.
O júri foi formado por Arthur Nestrovski, Carlos Heitor Cony, João Adolfo Hansen, João Alexandre Barbosa, Leyla Perrone-Moisés, Luiz Costa Lima, Marcelo Coelho, Moacyr Scliar, Silviano Santiago e Walnice Nogueira Galvão. Eles selecionaram os cem livros que consideram os principais do período, colocando em ordem hierárquica de preferência os dez primeiros e citando os demais 90 sem classificação valorativa. Estabeleceu-se, então, uma pontuação e as listas foram confrontadas, chegando-se à relação definitiva. No total, houve menções a 378 livros (leia os dez mais votados na página ao lado e os demais 90 escolhidos às páginas 5-6 e 5-7).
Sobre o resultado final, como afirma o crítico Arthur Nestrovski, "fica evidente que não há nomes que possam competir em pé de igualdade com os principais autores do modernismo clássico; além disso, a lista mostra aquilo que todo mundo sabe, que Joyce, Proust e Kafka definem o momento literário".
A possibilidade de prever os principais ganhadores -obras, em sua ampla maioria, escritas antes de 1950- é, aliás, comentada pelo escritor e jornalista Marcelo Coelho: "Uma matéria tão subjetiva quanto o gosto literário tem, apesar disso, um resultado tão previsível, o que acaba pondo em dúvida a própria idéia de subjetividade".
Coelho ainda destaca a importância da publicação da lista, que serve como referência para quem deseja saber o que vale a pena ler. Esse aspecto também é citado pelo ensaísta João Alexandre Barbosa: "Além de tudo, a lista tem uma função didática interessantíssima para o jovem leitor, para aquele que está começando a ler".

A supremacia do inglês
Se entre os dez primeiros colocados o predomínio é da língua alemã, com quatro obras (dois livros de Kafka e dois de Thomas Mann), de acordo com a lista o melhor do romance no século foi escrito em língua inglesa, idioma original de mais de um terço das obras presentes. Em seguida, aparecem, respectivamente, o francês e o alemão.
A literatura brasileira comparece apenas duas vezes entre os cem mais votados, com "Grande Sertão" e "Macunaíma", apesar de outros livros, como "Triste Fim de Policarpo Quaresma", "Vidas Secas", "Esaú e Jacó" e "Memorial de Aires" -os dois últimos, de Machado de Assis- também terem sido mencionados por alguns jurados. Convém lembrar que "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro", provavelmente os três mais famosos livros do escritor, foram publicados antes de 1900 e, portanto, não participaram desta votação.

Um grande ausente e a crise
Como o critério escolhido foi o de selecionar apenas romances, e não obras de ficção em geral, ficaram de fora da lista escritores fundamentais, como, por exemplo, o argentino Jorge Luis Borges. Como afirma a professora de literatura Walnice Nogueira Galvão, "na segunda metade do século, certamente o escritor de prosa mais importante é Borges, e ele não entra na lista".
De acordo com a ensaísta Leyla Perrone-Moisés, a ausência de Borges está ligada a uma dificuldade da própria conceituação da palavra romance na contemporaneidade: "A definição de romance fica muito prejudicada no século 20. O romance é um gênero que está bem caracterizado no século 19. Se fosse prosa de ficção, entraria Borges, porque ele foi um daqueles do século 20 que rejeitaram a "fórmula romance'. Há no século 20 uma tendência para apreciar o gênero curto, do qual ele é o autor mais representativo".
A crise do romance no século 20 é também lembrada pelo escritor Moacyr Scliar: "Há uma crise no sentido de mudança de rumo. Até os anos 30, 40, o romance se beneficiava do grande impulso que teve no século 19. Proust, Kafka e outros se aproveitaram do grande prestígio para introduzir modificações formais. Aí o romance começa a competir com outras formas de expressão e, neste final de século, está longe de ser aquele gênero avassalador". Já para João Adolfo Hansen, é o "próprio estatuto do literário que está em crise". Segundo o professor de literatura, nas últimas décadas "os livros de história substituíram o romance, buscando um efeito de realidade; foi um fenômeno mundial".
Para o ensaísta Luiz Costa Lima, entretanto, não há "crise do romance", ele apenas está se alterando: "Simplesmente existe um mundo como matéria-prima que motiva uma configuração da escrita diferente daquela que vigorou no século passado. O romance está sofrendo a modificação que a própria escrita da história sofre hoje em dia".
Ser um gênero em constante mutação é também a principal característica do romance para o escritor e crítico Silviano Santiago: "É impossível falar que o romance acabou, ele vive em constante mutação; para mim, a melhor definição de romance é que ele é um gênero "formless', sem forma; ele, então, na verdade, nunca começou. O romance tem inventado desde o início a sua própria forma".
As controvérsias, no entanto, não se resumem a questões técnicas e definições. Há, entre os jurados, quem questione a presença de "Finnegans Wake" ("ilegível", disse um), de "O Som e a Fúria" ("presença típica de uma eleição feita no Brasil"), de Thomas Mann ("um diluidor"), de "Grande Sertão: Veredas" ("uma patriotada"). Até o vencedor "Ulisses" é questionado. Para o escritor Carlos Heitor Cony, a validade de "Ulisses" é uma "validade literária, ao passo que Proust transcende a literatura e pega o cerne do homem, é muito mais universal".



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