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26/11/2002 - 02h55

Leia prólogo do livro "Felicidade"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo o prólogo do livro "Felicidade", de Eduardo Giannetti, recém-lançado pela Companhia das Letras.

PRÓLOGO

A rotina entorpece. Vez por outra, entretanto, desabam sobre o mundo acontecimentos que sacodem e alteram o nosso sentido de prioridades: preocupações habituais murcham, possibilidades relegadas ganham viço. Novos ângulos e desafios se oferecem. O choque do inesperado subverte, ainda que por tempo limitado, a constelação dos valores que nos governam — os magos que detêm em suas mãos os fios secretos das escolhas e do enredo de nossas vidas.

Na primavera de 2001, poucos dias após os espantosos ataques terroristas contra os Estados Unidos, um grupo de amigos que se conheciam e conviviam de perto desde os bancos e passeatas estudantis resolveu que era tempo de refazer os seus vínculos de amizade em novas bases. Voltariam a ler e a estudar juntos, e passariam a se reunir com regularidade para debater questões de interesse comum. A idéia era resgatar de algum modo a abandonada "arte da conversação" — o simpósio platônico, o jardim epicurista, o salon setecentista. Em meio a tantas atribulações de profissão, família, contas a pagar e pura fricção urbana, eles fizeram uma escolha e apostaram nela. Queriam dedicar mais tempo e mais cuidado a uma das atividades que mais amavam na vida:— conversar filosofia.

Todo começo é frágil. As primeiras reuniões do grupo foram acesas e animadas, mas deixaram a desejar. Embalados pelo vinho e pelo ardor da novidade, eles se perdiam madrugada adentro num matagal de idéias encruadas, digressões espiraladas, becos e trilhas falsas. Alguma coisa, é claro, saía, mas o resultado invariavelmente desapontava. Ao fim dos encontros, no implacável "dia seguinte", tudo o que restava pelos cantos da memória eram fragmentos desconexos, insights duvidosos, estilhaços de brilho efêmero. Copos, bitucas, farelos. Calor de sobra, parca luz.

A grande deficiência, os amigos constataram, era a completa falta de estrutura dos colóquios — a ausência de um arcabouço compartilhado e de um foco mais definido que pudessem balizar o andamento da conversação e conferir ao encontro um mínimo de coerência, organicidade e direção. O desafio era encontrar o ponto certo entre dois extremos indesejáveis: o rígido formalismo do seminário acadêmico (pois disto, afinal, eles já andavam um tanto fartos) e o desregramento anárquico da conversa de botequim.

As qualidades de uma boa conversa deveriam ser a polidez sem fingimento, a franqueza sem rispidez, a erudição sem pedantismo, o rigor sem aridez e, sobretudo, a disposição sincera de cooperar na busca do saber. Afinal, eles se perguntaram, o que os impedia de, sem perder a leveza e o bom humor, perseguir com afinco a verdade? O sério não é sinônimo de soturno, assim como o profundo não o é de obscuro. La gaya scienza. Se a busca do saber não precisa ser sisuda, a alegria da convivência não precisa ser frívola.

As soluções foram surgindo aos poucos. Uma primeira medida, aceita por todos, foi delimitar claramente a duração de cada encontro. Começo, meio e fim: nada de falar até cair. Outra medida — maioria apenas — foi banir o consumo de álcool até o término da sessão. A "lei seca" traía a etimologia do termo simpósio (derivado do grego sumpotes: "companheiro de bebida"), mas ajudava a preservar a sobriedade dos debates. A decisão mais importante do grupo, no entanto, foi o compromisso de investir generosamente na preparação de cada encontro. Como aproveitar melhor o tempo que passariam juntos? O fracasso das primeiras tentativas deixara uma lição bem clara: a qualidade da conversa dependia de um trabalho prévio de estudo e elaboração. Todos precisavam cooperar. Aí residia o cerne do empenho que eles conjuntamente assumiram visando apurar a arte da conversação.

Tratava-se não só de fixar uma temática de interesse comum, ou seja, alguma preocupação ampla e compartilhada que permitisse mobilizar a ótica e a bagagem próprias de cada membro do grupo, mas também de definir uma pauta prévia e, se possível, uma pergunta ou questão bem definida que servisse de norte e fio condutor das discussões. A espontaneidade e a abertura do impromptu nos diálogos, ninguém discordava, tinham de ser preservadas; mas a qualidade dos encontros, a experiência mostrara a eles, dependia de uma boa dose de investimento e trabalho preparatórios. O suor teria que ser a enzima da inspiração. Como no jazz, a improvisação não prescindia do treino e do ensaio.

Na prática, isso significou a adoção de alguns procedimentos simples. Uma vez concluída a discussão preliminar sobre a temática geral dos encontros, o grupo decidiu que, para cada sessão, haveria um coordenador responsável. A ele caberia elaborar um ensaio curto (cinco ou seis páginas) que seria previamente distribuído ao restante do grupo e que teria como função servir de "aperitivo", ou seja, preparar o terreno, aguçar o apetite e lançar a pergunta central a ser debatida nos encontros.

Os ensaios abordariam o tema geral dos colóquios — a relação entre civilização e felicidade —, mas sempre a partir de uma perspectiva própria, refletindo a bagagem particular e a órbita de preocupações do autor. Além do enquadramento introdutório e de uma breve justificativa da questão proposta, o texto de abertura conteria também uma bibliografia sumaríssima, selecionada a dedo, e que poderia servir de apoio e pano de fundo aos debates. Finalmente, caberia ao coordenador do encontro a tarefa de fazer um registro gravado e a posterior transcrição dos trabalhos para distribuição, leitura e comentários dos demais.

Definidos os termos e as regras do jogo, teve início a nova rodada de reuniões. O intervalo maior entre as sessões (mensais) deu margem a um melhor preparo dos temas. Um impulso inesperado veio nas asas da internet. O uso do correio eletrônico permitiu que os diálogos de viva voz prosseguissem e acabassem adquirindo uma espécie de vida própria no mundo paralelo do ciberespaço. Graças a essa facilidade, foi possível para os participantes dos diálogos aprimorar a qualidade de suas intervenções e, em diversos casos, acrescentar referências e citações que pudessem enriquecer as falas originais. A única restrição ao processo de contínua revisão dos textos foi a de não mexer na estrutura dos diálogos. As modificações eram bem-vindas, mas desde que respeitassem o conteúdo básico e a seqüência original das falas tal como elas se sucederam no calor da conversa. Uma vez posta em movimento, a bola de cada encontro seguiu rolando muito além do tempo-espaço regulamentar.

O material reproduzido a seguir neste volume, gentilmente cedido à editora do livro por um dos membros do grupo que preferiu permanecer anônimo, é uma versão revista e editada, mas certamente longe de definitiva, dos quatro textos de abertura e dos diálogos que eles motivaram.

Leia mais:
- Felicidade - modos de usar
- Felicidade em quatro tempos
- Filosofia e felicidade ao alcance do leitor
- Felicidade para gregos e troianos

     

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