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26/11/2002 - 02h57

Filosofia e felicidade ao alcance do leitor

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
especial para a Folha de S.Paulo

Eduardo Giannetti, um dos mais sofisticados e produtivos intelectuais brasileiros, está com mais um trabalho à disposição do público. O livro "Felicidade" é uma breve história filosófica do conceito, com forte ênfase em aspectos econômicos, estruturada na forma de um colóquio fictício entre quatro personagens da classe média brasileira.

A própria forma do trabalho demonstra a intenção do autor em ser acessível a um público bem mais amplo do que o tradicionalmente interessado em ensaios acadêmicos como esse. Giannetti, que escreve com frequência para meios de comunicação de massa, tem tido a preocupação constante de divulgar ao máximo suas idéias.

Faz bem, embora o resultado em termos de estilo nem sempre chegue a ser plenamente satisfatório, como neste caso, em que os diálogos entre os personagens são excessivamente artificiais, em particular quando intervenções de coloquialismo são enxertadas em passagens de grande carga abstrata. As possíveis vantagens no que se refere à popularização da linguagem talvez não sejam tão grandes a ponto de justificar a falta de naturalidade do texto e suas sucessivas interrupções, que às vezes o tornam pouco escorreito.

O conteúdo, no entanto, permanece ileso. Embora não se trate nem se proponha a ser um tratado sobre a felicidade, o livro faz um resumo satisfatório e instigante das teses mais discutidas por filósofos sociais nos últimos dois séculos a respeito das relações entre progresso material e a sensação de bem-estar dos seres humanos.

O ponto de partida e fio condutor do volume é a noção de que uma das promessas fundamentais do Iluminismo (a de que o avanço da tecnologia levaria inexoravelmente a sociedade e seus indivíduos à felicidade) não se cumpriu. A partir dessa constatação consensual entre os quatro personagens do livro, embora com nuances qualificativas entre eles, discute-se o que fazer.

São interessantes as referências a estudos recentes de economistas de países desenvolvidos, em que se cruzam indicadores de renda e consumo com dados de pesquisas de opinião feitas para aferir o sentimento de satisfação de entrevistados com sua própria vida. A literatura parece demonstrar sem deixar margem a dúvidas que, ultrapassada a barreira do nível de rendimento de US$ 10 mil anuais per capita, acréscimos adicionais de renda não mais se traduzem em ganhos de bem-estar subjetivo.

Apesar de todas as limitações metodológicas desses estudos (fartamente detalhadas por alguns dos personagens durante os colóquios imaginários), eles não deixam de constituir boa demonstração de que alguns dos principais problemas da condição humana dificilmente se resolvem por meio de soluções materiais.

É curioso que Giannetti não tenha incluído na vasta e requintada bibliografia que lhe serviu de apoio um livro editado originalmente em 2000, do romancista e filósofo amador francês Pascal Bruckner, chamado "L'Euphorie Perpétuelle" (no Brasil, "A Euforia Perpétua"). Bruckner levanta uma dúvida praticamente ausente nos simpósios de Giannetti: será que a busca da felicidade é necessariamente a única (ou a mais importante) razão de viver, para os seres humanos?

O "dever de ser feliz", que se tornou um dogma na sociedade contemporânea, pode não se constituir na motivação essencial de uma pessoa. Ao contrário, ela pode ser, como a infelicidade, apenas evento indireto, fugaz, resultante de valores como amor, amizade, trabalho, arte, esses sim os verdadeiros eixos da atividade humana.

A inclusão desse elemento poderia ter enriquecido ainda mais as inteligentes conversas entre Leila, Alex, Otto e Melo, as "dramatis personae" de "Felicidade". Mesmo sem ele, no entanto, constitui um enorme prazer a leitura de um ensaio filosófico capaz de citar, além de Aristóteles, Bacon, Marx e Habermas, também Machado de Assis e Dorival Caymmi.

Carlos Eduardo Lins da Silva, 49, é diretor-adjunto de redação do jornal "Valor Econômico".

Leia mais:
- Felicidade - modos de usar
- Felicidade em quatro tempos
- Felicidade para gregos e troianos
- Leia prólogo do livro "Felicidade"

     

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