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26/11/2002 - 02h46

Os mil e um sabores da criação

ALCINO LEITE NETO
da Folha de S.Paulo, em Paris

Uma nova profissão acaba de ser consolidada na França: estilista em imaginário alimentar. O que é isso? "Nosso trabalho é imaginar todos os alimentos que não existem e com os quais podemos sonhar, criando novos protótipos e combinações, ampliando e reinventando, assim, os hábitos alimentares", explica Edouard Malbois, 37, diretor-geral da Enivrance.

Protótipos de cápsulas de saladas, cuja membrana permite conservar seus molhos
A empresa é o primeiro "escritório de estilos alimentares" do mundo. Foi criada há seis meses. No Salão Internacional de Alimentação, que aconteceu em Paris no último mês, a Enivrance apresentou sua primeira "coleção de imaginário alimentar", causando grande sensação.

Os protótipos de alimentos criados pela empresa beiram o maravilhoso, pelo arrojo das idéias, a curiosidade das soluções encontradas e o cuidado na construção visual, em que os produtos ganham formas e cores como se fossem uma pequena obra de arte.

A Enivrance propõe, por exemplo, a condensação de alimentos em páginas de cores variadas que formariam um livro de sabores. Poderiam ser "folhas" de frutas, de sorvetes, de temperos ou de presuntos variados. "As crianças levariam o livro à escola e poderiam destacar as folhas para compor os sanduíches", diz Malbois.

Outra coleção inventa cápsulas transparentes, que poderiam conter saladas de vários tipos. Para comê-las, bastaria deixar romper na boca a membrana natural que as envolveria. Outro projeto recria as frutas e os vegetais para as crianças, transformando-os em brinquedos. Os chocolates ganham formas extraordinárias, com barras de cores irridescentes e prateadas ou que imitam texturas naturais.

Projeto para armazenar verduras ou frutas frescas em placas fáceis de transportar
"Por que não comer frutas, framboesas, por exemplo, da mesma forma como se come um chocolate? Ou degustar uma cápsula de salada natural durante uma reunião?", sugere.

Um grosso catálogo expõe os protótipos da empresa. Parece um livro de arte que registra uma exposição. Custa US$ 100 mil. O preço é alto porque o livro é o tesouro de idéias da Enivrance. Segundo Malbois, os mais de 200 projetos de alimentos que ele contém são resultado de quase dez anos de trabalho. "É um catálogo de criação, um acelerador de idéias, que expande a imaginação."

O catálogo é a principal criação da Enivrance, que não faz os alimentos propriamente ditos. "Nosso trabalho é propor visões novas, e não preparar os alimentos. Nós criamos idéias que vão inspirar o setor agroalimentar, as indústrias, os restaurantes. Os projetos contidos no catálogo podem ser interpretados de 20 maneiras diferentes por 20 empresas diferentes", afirma.

Quem estiver interessado numa coleção privada de alimentos, feita sob encomenda, paga bem menos por ela: a partir de US$ 15 mil. Malbois imagina, por exemplo, novas formas para a apresentação da caipirinha, o drinque brasileiro que é bastante famoso na Europa. "Podemos fazer caipirinha na forma de charutos —bastões congelados em caixas refrigeradas— ou em pequenas placas que poderiam ser levadas no bolso e seriam colocadas dentro dos copos com gelo, ou ainda fazê-la em cápsulas cobertas de membranas naturais, que deixassem ver os diferentes frutos —o limão verde, o amarelo, a lima", sugere.

A Enivrance é um pequeno escritório, pilotado por Malbois e o diretor de arte Philippe Baumont, 33. Mais cinco pessoas participam da equipe, na área comercial e de produção artística. Atualmente, a empresa dá consultorias a grandes grupos do setor alimentício e cadeias de lojas, como a inglesa Harrods, para cuja marca está desenvolvendo uma coleção de produtos.

O empresário Malbois vê um campo de trabalho "extraordinário" nos próximos anos no campo do "estilismo em imaginário alimentar". Como na Enivrance, é uma atividade que convoca conhecimentos de designer, de arquitetura, de fotografia e de artes plásticas, além, claro, de alimentação.

"Eu adoraria que essa fosse uma disciplina inteira no processo de inovação cultural, que reunisse todas as pessoas que têm vontade de criar, de viver, de jogar inteligentemente". Para ele, o futuro imaginado pela antiga ficção científica —de que comeríamos pequenos comprimidos de alimentos— não vingou. "Era uma concepção puritana, ligada à idéia de que deveríamos economizar tempo com a alimentação para sermos mais produtivos."

Fotos Divulgação
Phillippe Baumont e Edouard Malbois com o catálogo da Enivrance

Os homens, ao contrário, se interessam cada vez mais pela diversificação alimentar, por sabores variados e exóticos, pelas formas inspiradas dos pratos e a preservação da origem natural dos alimentos. "A idéia é encontrar soluções alimentares que prolonguem, e não que contradigam, a natureza e propor essa mesma natureza em formatos e emoções novos. Nosso conhecimento dos alimentos e nossa capacidade de reuni-los ainda é muito limitada diante da riqueza natural", diz Malbois.

A Enivrance tem também uma dimensão política, na concepção de Malbois. "Fazemos tudo aquilo que a sociedade nos interdita. Por que não podemos sonhar no domínio do alimento? Queremos materializar um espírito novo, que vai forçosamente criar mudanças no hábito alimentar. Nossa proposta é imaginar uma outra vida."

     

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