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26/11/2002 - 02h44

Brincadeira levada a sério

FLÁVIO FERREIRA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Com um discurso de sua autoria, William Aparecido Rodrigues, 12, abriu, no início deste mês, a conferência internacional sobre atividades lúdicas no Memorial da América Latina, em São Paulo. Articulado, o garoto parece ser fruto de uma educação repleta de brincadeiras pedagogicamente elaboradas.

Caio Esteves/Folha Imagem
"Não Importa o brinquedo, importa o que a gente faz com ele", William Aparecido Rodrigues, 12, estudante

A aparência, porém, engana. Após a cerimônia de abertura, ele contou à Folha que gosta mesmo é de videogame e Banco Imobiliário. E não vê nada de alienante em sua preferência. "Não importa o brinquedo, importa o que a gente faz com ele", disse William, que também não dispensa leitura e jogo de bola.

A história de William corrobora o entendimento da maioria dos especialistas em ludoeducação. Eles acham que qualquer brinquedo —mesmo os de forte apelo comercial— podem ser boas ferramentas para que a criança desenvolva suas potencialidades, se não ocorrer o uso abusivo e exclusivo.

A neuropediatra Adriana Cruz, mestre pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), por exemplo, apresentou no evento uma pesquisa empírica que mostra que certos jogos eletrônicos, se não forem usados excessivamente, podem ser bons para incrementar a coordenação mãos-olhos, melhorando especialmente as respostas motoras para estímulos visuais contralaterais.

Na conferência, organizada pela Associação Internacional pelo Direito de Brincar (IPA, sigla em inglês de International Association for the Child's Right to Play) e pela sua afiliada brasileira, outra idéia defendida foi a de que as crianças devem ter a oportunidade de brincar com objetos simples e da maneira que bem queiram. Especialistas afirmam que a atividade é proveitosa, mesmo sem a companhia de outras crianças. Tal oportunidade, dizem eles, também não deve ser pensada como um prêmio para bons alunos.

Os ludoeducadores identificam um movimento em direção contrária. Cada vez mais, os pais, tendo em vista a competitividade que seus filhos enfrentarão, preferem as atividades educativas, transformando as crianças em miniexecutivos. Mas os especialistas advertem para a necessidade de um equilíbrio, de modo que não seja restringida a oportunidade de as crianças fazerem descobertas por si próprias e desenvolverem a criatividade elaborando suas próprias brincadeiras.

Jan Van Gils, diretor do Centro de Pesquisas sobre Infância e Sociedade da Bélgica e presidente da IPA, ilustra tal entendimento com um exemplo próximo da realidade brasileira. Para ele, "o Brasil produz jogadores tão bons em alta escala porque a maioria das suas crianças brinca de futebol, enquanto, nos outros países, elas jogam futebol".

Na história do conhecimento humano há indícios de que brincar de maneira livre pode realmente incrementar a vida intelectual adulta. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o físico Albert Einstein (1879-1955), o compositor Igor Stravinski (1882-1971) e o pintor Pablo Picasso (1881-1973), nenhum deles bons alunos.

Einstein brincava com um compasso magnético e, segundo sua irmã, se divertia ao ver objetos caindo. Seus pais não o reprimiam. O russo Stravinski brincava de imitar o canto de mulheres voltando do trabalho em um vilarejo vizinho a São Petersburgo. O pintor espanhol teve a seu dispor, desde cedo, vários tipos de material de desenho, e não apanhava da mãe quando rabiscava as paredes da casa.

Não é o caso, porém, de idealizar o vale-tudo. Os especialistas em atividades lúdicas não defendem que a criança deva fazer tudo o que quiser. Entendem que o equilíbrio entre brincar e educar é a chave para o melhor desenvolvimento das habilidades.

Para Celso Antunes, da PUC-SP e autor de mais de 20 livros sobre o assunto, entre eles "As Inteligências Múltiplas e Seus Estímulos" (Papirus, 146 págs., R$ 20), "não se deve separar o brincar do aprender". Ele entende que as melhores ferramentas para incrementar o desenvolvimento na infância são os brinquedos e os jogos verbais, que seriam aqueles mais aptos a "desenvolver o universo cognitivo das crianças por meio da linguagem".

Antunes baseia suas idéias nas descobertas dos neurocientistas Howard Gardner e Marian Diamond. O primeiro, professor da Universidade Harvard, elaborou a teoria de que o homem possui oito tipos de inteligências, que podem ser desenvolvidas a partir da infância: a linguística ou verbal, a lógico- matemática, a espacial, a musical, a sinestésica corporal, a naturalista, a intrapessoal e a interpessoal.

Diamond, acadêmica da Universidade da Califórnia em Berkeley, sustenta que há idades na infância em que o desenvolvimento de certas habilidades intelectuais e emocionais é mais propício e chama essas fases de "janelas de oportunidade". Para a neurocientista, a melhor idade para o desenvolvimento das habilidades cognitivas das crianças vai de 1 ano e meio a 7 anos, em média, período em que as mudanças na plasticidade do cérebro mais ocorrem.

A utilização de espaços públicos também é outra bandeira daqueles que pensam as atividades lúdicas como indispensáveis para o desenvolvimento das habilidades das crianças. Tom Jambor, professor emérito da Universidade do Alabama em Birmingham, EUA, e especialista em desenvolvimento infantil, diz que pais não devem gastar dinheiro e tempo para desenvolver atividades sofisticadas para suas crianças. Basta que eles garantam que tenham segurança nos espaços públicos, para brincar e ter contato não só com outras crianças mas também com adultos. "É importante que a criança brinque em ambientes dos quais os adultos façam parte, como ruas e praças públicas, uma vez que os comportamentos dos mais velhos são referências fundamentais nos seus processos de aprendizagem", afirma.

Fabiano Cerchiari/Folha Imagem
Cláudia Carraccioli e a filha Gabriela, 2, no quintal de sua casa, em São Paulo
Ter espaços públicos para seus filhos brincarem é privilégio de poucos nas grandes cidades. A administradora de empresas Cláudia Carraccioli, 37, mãe de Gabriela, 2, é uma dessas privilegiadas. Leva sua filha para brincar em uma pequena vila e na praça Horácio Sabino, em Perdizes. Ela pretende gastar mais tempo e esforços para garantir que sua filha possa continuar brincando com segurança em tais locais do que na procura de jogos educativos ou brinquedotecas. "Sinto que é na praça que minha filha se sente melhor e parece ficar mais esperta. Vou procurar reunir-me com outras mães e lutar para que os órgãos públicos preservem e melhorem esses espaços", diz Carraccioli.

A advogada e administradora Vilma Peramezza, 60, gerente-geral do Condomínio Conjunto Nacional, em São Paulo, um dos maiores centros comerciais do país, diz que ter brincado na rua com várias crianças na sua infância a ajudou a ter jogo de cintura e discernimento para administrar o enorme conglomerado de residências e empresas situado na avenida Paulista. "Eu brincava de casinha na rua com mais de 20 crianças. Os brinquedos de cada um eram compartilhados, e, mesmo assim, a brincadeira sempre funcionava muito bem. Com certeza essa experiência me ajuda a, hoje, administrar os interesses dos mais de 30 mil usuários que passam por aqui todos os dias", diz Peramezza, que também preside a IPA Brasil.

Fabiano Cerchiari/Folha Imagem
Vilma Peramezza em seu escritório na avenida Paulista
A promoção das atividades lúdicas no país ganha força. Além da conferência internacional da IPA ter ocorrido no Brasil, outro fato indica que a ludoeducação conquista espaço por aqui. Em parceria com as secretarias estaduais das relações de trabalho e da assistência social, a IPA Brasil realizará na cidade de São Paulo, em 2003, um curso piloto para a formação de ludoeducadores. Segundo o secretário do Emprego e Relações do Trabalho do Estado de São Paulo, Fernando Leça, "a realização do curso pode ser considerada o primeiro passo para a regulamentação da profissão de ludoeducador no país".

A notícia sobre os esforços nacionais para desenvolver a ludoeducação no Brasil serviu de alento para os norte-americanos participantes da conferência da IPA, que estão preocupados com a crescente redução do tempo de recreação nas escolas de ensino infantil e fundamental dos EUA.

Edgard Klugman, professor emérito do Wheelock College, de Boston, Massachusetts, declarou, durante a conferência da IPA, que "o exemplo dos governantes do Brasil deveria ser seguido pela conservadora administração educacional do governo Bush, que, cada vez mais, está tolhendo nossas crianças e jovens de tempo e espaço para que eles construam seus universos cognitivos e comunitários".

No jogo da ludoeducação, ponto para o Brasil.

     

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