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29/10/2002 - 02h52

Um físico que vasculha o céu dos índios

PAULO DE CAMARGO
free-lance para a Folha de S.Paulo

Nas margens do Rio Içana, no coração das matas entre o Estado do Amazonas e a Colômbia, o físico e astrônomo Carlos Alfredo Argüello redescobriu o céu dos índios baniwa.

Caio Esteves/Folha Imagem
Carlos Alfredo Argüello na sala de sua casa, em Campinas (SP)

Agora, guarda cuidadosamente os mapas celestes produzidos e planeja a sequência de um projeto ambicioso e inédito: registrar e comparar os céus vistos por 40 etnias indígenas brasileiras. "Aí será possível comparar o modo como viam o céu e até identificar eventuais contatos anteriores entre os povos indígenas", espera esse portenho que vive no Brasil desde 1962, quando se casou com a física Zoraide Argüello.

Mas por que alguém se interessaria em conhecer as constelações vistas pelos índios? A pergunta é quase uma provocação para Argüello que, aos 66 anos, dedicou boa parte das duas últimas décadas ao ensino das ciências e, particularmente, à formação de professores em escolas indígenas.

"No mundo de hoje, é preciso entender melhor algumas coisas, antes que elas sejam completamente destruídas. Junto com o conhecimento astronômico dos índios, vai desaparecendo sua visão de mundo, sua cultura", diz, com um forte sotaque castelhano.

Argüello não é desses nomes fáceis de encontrar na internet, com livros publicados ou citações na imprensa. Ao contrário, é discreto e alheio à fama, o que é raro em alguém que conquistou a admiração de personalidades como o educador Paulo Freire (1921-1997).

Um dos fundadores da Unicamp —onde foi diretor do Instituto de Física—, pós-doutorado na Universidade do Sul da Califórnia e criador do Planetário de Campinas, Carlos Alfredo Argüello se tornou mais uma referência do desprendimento de que são capazes homens da ciência. "Quando tive de fazer boa ciência, fiz; publiquei artigos em revistas internacionais, trabalhei com laser quando ainda era uma novidade; mas agora só penso em ir a campo e formar pessoas", confessa.

Na verdade, sua entrada no mundo do ensino deveu-se a um aborrecimento e a uma alegria. A alegria foi o nascimento de seus filhos. "Todo mundo que tem filhos começa a refletir sobre educação", diz. O aborrecimento foi o afastamento forçado da Unicamp. Argüello fez parte de um grupo de pesquisadores da Unicamp exonerados durante a ditadura militar, para facilitar a escolha de um reitor nomeado pelo governo.

"Foi então que desmunhequei", conta o físico, referindo-se a muitos acadêmicos que ainda vêem a dedicacão à educação como uma mostra de fraqueza ou incompetência.

Quando não está percorrendo milhares de quilômetros de carro, barco e avião, pelo interior do país, Argüello desenha projetos de robótica, quase sempre a partir de sucata, em uma oficina de microeletrônica. Já inventou, por exemplo, atividades que envolvem termostatos de ferros elétricos e sensores acoplados ao teclados de computador. "Em nossa cultura, estamos cada vez mais acostumados com coisas que nos chegam prontas, e eu gosto de criar, buscar o novo", explica.

Recentemente, Argüelo transferiu sua oficina para Ilhabela, no litoral de São Paulo, onde possui uma casa e onde fica mais perto da maior de suas paixões —o mar. Mergulhador e navegador, Argüello já realizou algumas proezas nessa área, também. Em 1995, pouco antes de completar 60 anos, empreendeu praticamente sozinho uma travessia do Atlântico, das ilhas do Caribe até o porto de Gibraltar, no continente europeu. Para isso, contou apenas com a ajuda de um barqueiro, que o acompanhou no Top-hat, um veleiro de 75 pés.

Argüello diz ter feito a viagem para saber como raciocinou Cristóvão Colombo, quando regressou da América para a Europa, já que, no meio do caminho, está a região do mar dos sargaços, com poucos ventos e muitos perigos. Comparando as informações do sistema de localização geográfica por satélite (GPS) com cálculos matemáticos então conhecidos na época, refez o que acredita ter sido a rota de retorno do navegador espanhol.

Para ele, a viagem não foi nenhuma demonstração de coragem, tampouco de excentricidade. Antes de realizá-la, Argüello participou pessoalmente da montagem dos equipamentos e planejou minuciosamente sua jornada. "Feito isso, não há o que temer, não há monstros no mar."

Argüello procurou guiar-se pelas estrelas. Nada místico, o físico vê nelas a beleza de refletirem a visão de mundo das diferentes culturas humanas.

A viagem é um bom retrato da personalidade do educador, sempre em busca de formas de aliar o conhecimento teórico à prática. E foi isso que ele levou às escolas e prefeituras que passou a assessorar quando deixou a Unicamp, no começo da década de 80.

Por onde passou, Argüello deixou marcas duradouras, principalmente em Campinas, cidade em que fincou raízes. Utilizando equipamentos recebidos pelo MEC como pagamento de dívidas de países do leste europeu, o físico conseguiu montar o Planetário da cidade, até hoje um dos mais concorridos do Brasil, e o Museu Dinâmico de Ciências.

Arquivo Pessoal
Argüello, ao centro, em pé, em curso para professores indíenas, no Tocantins

A característica em comum é justamente que ambos oferecem propostas modernas para o ensino da ciência, com um grande número de experiências práticas e a ligação entre o saber e o cotidiano das pessoas. "Ensinar ciência é educar para o processo de fazer ciência", defende. "Portanto, o aluno precisa participar desse processo para produzir conhecimento científico. Por isso, todas as crianças detestam física em sala de aula, mas a adoram nos museus!"

Na mesma época da implantação do Planetário, Argüello iniciou trabalhos que transformaram profundamente a sua vida. Como diretor de um núcleo para o ensino de ciências na universidade, foi convidado a participar, em 1987, de um projeto de formação de professores leigos, na região do Médio Araguaia (MT). No Inajá, 130 professores, alguns apenas alfabetizados, viajavam em canoas por cerca 100 quilômetros para aprender com professores da Unicamp. O projeto criou um modelo de formação que se tornou um paradigma, desde então. Com um currículo desenvolvido de acordo com a realidade dos alunos, misturando fases presenciais de imersão com trabalhos de acompanhamento nas localidades de origem dos alunos, conseguiu aperfeiçoar a qualidade do ensino em diversas áreas do Mato Grosso.

Já habituado a assessorar localidades distantes e aldeamentos, Argüello foi, então, convidado a participar de outro projeto de ponta, o Tucum —uma avançada proposta de ensino superior para povos indígenas. O Brasil é uma das poucas nações do mundo em que se oferece essa formação, o que é considerada uma conquista importante para a defesa da cultura indígena.

De acordo com o último censo —feito pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação— existiam, em 1999, 1.392 escolas indígenas no país e, aproximadamente, 75 mil estudantes índios. A legislação brasileira já prevê uma educação especial para os índios, inclusive com currículo próprio. Com professores vindos das aldeias, é possível que o processo educativo aconteça de forma a preservar mais elementos de cada cultura. "Mesmo assim, a escola continua sendo a instituição que o branco pensou para o índio, com a padronização, a disciplinariedade e a competição, ignorando o conteúdo cultural indígena", explica.

Mas não é fácil educar povos da floresta, e é aí que entra a experiência de Carlos Alfredo Argüello, principalmente na área de ciências. "O trabalho que desenvolvi serve aos índios, mas deveria ser aplicado também aos brancos", diz o professor. O projeto baseia-se essencialmente em aulas experimentais, que exploram a criatividade e utilizam recursos locais. Um exemplo é a construção de uma balança de mola que utiliza a própria flecha dos índios.

"Realizo, em cada aula, de oito a dez experimentos", conta Argüello. Ele aproveita o conhecimento e as habilidades desenvolvidas por esses povos e oferece novos instrumentos para que possam buscar sua independência. Ao ensiná-los a construir balanças que os auxiliam no comércio com os brancos, desenvolve conceitos como as leis de equilíbrio e peso e chega às equações de primeiro grau.

Para os índios, é muito difícil realizar algumas operações aritméticas. "O índio conta um, dois, três, quatro e logo diz muitos, pois, para ele, não faz sentido enumerar grandes quantidades", exemplifica. "Da mesma forma, a divisão é uma abstração, um conceito difícil para eles", diz, pois não existe na vida cotidiana da aldeia. "No entanto, eles dominam idéias matemáticas bastante complexas, como o repartir, ou seja, dividir uma caça levando em conta proporções das necessidades dos membros da tribo", pondera.

Essa preocupação com o cotidiano não impede que o físico leve as conquistas da ciência para que os índios possam se apropriar desses instrumentos. Ele já montou um curso de robótica, utilizando sucata, em Alta Floresta, em Mato Grosso. Planeja, também, levar a internet a algumas aldeias com as quais trabalha.

Propostas de ensino e idéias como essas acabaram atraindo para perto dele alguns pesos-pesados do pensamento brasileiro. Junto com pesquisadores de várias áreas científicas, ele e Paulo Freire montaram um grupo de estudos de etnociência, que apelidaram de "Clube da Rúcula" —nome inspirado no hábito de Freire de comer rúcula quando bebia uma cachaça.

O cenário dos encontros ainda está montado na casa de Argüello, embora o grupo tenha se desfeito. Numa varanda cheia de redes —apreciador do sono embalado nelas, Argüelo possui mais de 30 diferentes modelos—, há também muitas plantas, livros, artefatos indígenas. "Não gosto muito desse assunto, pois as pessoas podem achar que estou querendo a fama de Freire, mas o fato é que nos dávamos bem", explica.

O grupo produziu alguns poucos documentos ainda inéditos, mas é conhecido no meio acadêmico. As idéias da etnociência ganharam espaço e traduzem a preocupação de educadores e cientistas respeitarem o conhecimento de outros povos, bem como a sua maneira de aprender.

Os povos indígenas, em geral, não enxergam nas estrelas as formas vistas pelos ocidentais. Alguns preferem ligar estrelas menores ou mesmo os pontos escuros no céu, e associam as imagens a fatos do seu calendário, como as cheias, a época em que surgem mais predadores ou a fase de plantio.

Daí a preocupação de Argüello em mapear o céu dos índios, e em criar situações onde os mais jovens se interessem pelo saber dos anciões, que está se perdendo. "Quando introduzimos um conhecimento novo, muitas vezes estamos matando uma parte da cultura que vigia antes. É uma espécie de massacre cultural dos índios", argumenta.

Certa vez, exemplifica, levou um índio tapirapé ao Planetário de Campinas. Lá, queria que seu amigo o fizesse ver a constelação da Onça, que existe na cultura tapirapé e, ao mesmo tempo, pretendia mostrar-lhe a constelação do Escorpião. Como nenhum dos dois foi capaz de ter a visão do outro, Argüello lançou mão de um recurso do planetário, onde a constelação aparecia desenhada, com linhas ligando as estrelas. Dessa vez, então, o índio viu a do Escorpião. Tempos depois, pediu novamente ao índio que lhe mostrasse a constelação da Onça, ao que o índio respondeu: "Desde aquela vez, nunca mais consegui ver a Onça". "Este foi o dia em que o escorpião matou a onça", conta, com tristeza, Argüello.

RAIO-X
Nome: Carlos Alfredo Argüello
Nascimento: 20 de janeiro de 1936, em Buenos Aires
Família: viúvo (40 anos de casamento), dois filhos e dois netos
Formação: físico, com doutoramento pela USP e pós-doutorado pela Universidade do Sul da Califórnia
Profissão: professor titular do Instituto de Física da Unicamp e da Universidade Estadual do Mato Grosso
Hobbies: navegar, mergulhar, assistir a corridas de Fórmula 1 deitado em uma de suas 32 redes, inventar experiências de microeletrônica e robótica e observar os astros celestes
Livros publicados: "Contribuições da Interdisciplinaridade para a Ciência, para a Educação, para o Trabalho Sindical", em colaboração com A. Nogueira, E. Sebastiani, J.W.Geraldi e Paulo Freire; "Astronomia com Régua e Compasso", em colaboração com Marcos D. Neves (Papirus, 1987); "Centros e Museus de Ciências - Visões e Experiências" (Saraiva, 1998)

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