Pensata

Alcino Leite Neto

23/08/2002

Como os jornais asfixiam os eleitores

Uma das coisas que mais impressionam quando se lê, no exterior, a cobertura das eleições presidenciais nos jornais brasileiros é a ausência de notícias, reportagens e reflexões de fato sobre os principais agentes políticos de uma democracia: os próprios eleitores, os cidadãos anônimos que elegem os candidatos.

Todo o noticiário eleitoral na imprensa é voltado para as personalidades políticas, os partidos, as articulações, as intrigas _até o exagero. Muito papel é gasto também para falar sobre as reações da elite econômica e dos grandes empresários, em reportagens com frequência redundantes, pois não há a gente mais previsível no mundo do que empresários.

Os jornais também se interessam muito pela opinião eleitoral dos artistas e das figuras da sociedade, os chamados "colunáveis", publicando-as com destaque, para dar um lustre de "entertainment" à árdua e repetitiva cobertura do dia-a-dia.

Os eleitores em geral aparecem somente nas pesquisas de opinião, transfigurados em índices frios. Ou no folclore das campanhas, descritos como espécimes de um zoológico populista. Ou ainda em reportagens excepcionais sobre comunidades extraordinárias, como (imagino) uma vila no interior do país com apenas 666 eleitores. Em relação ao seu próprio povo, a mídia brasileira nutre uma relação de indiferença, exotismo ou medo diabólico.

Quase nada se encontra nos jornais que examine, fora da estatística e do caso de exceção, o que pensam os sujeitos comuns, os grupos sociais e as comunidades, no momento em que, por exemplo, começa a campanha política na televisão.

Algum jornalista terá acompanhado com interesse as reações de uma família de classe média paulista ao primeiro dia dos candidatos na TV? Qual a reação dos cearenses de Fortaleza ou de Chorosinho (CE) ao discurso e ao estilo de José Serra? O que paulistas que votaram em Collor pensam da performance de Ciro Gomes? Que diferenças vêem eles entre o ex-presidente e o candidato atual? São as curiosidades e questões banais, espantosamente verdadeiras, que mais interessam, e não as abordagens mirabolantes, que importam sobretudo aos próprios "profissionais da profissão" jornalística.

Quase nada se vê na imprensa, também, sobre o "baixo clero" dos partidos, o trabalho das militâncias de direita e esquerda nos cafundós do Brasil ou nas periferias das grandes cidades, as movimentações políticas nas escolas de segundo grau e universidades, as torcidas nos órgãos de governo. Tem-se a impressão de que a política prescinde dessas ações microscópicas e que tudo se decide pela TV. Serra e Ciro dispõem de um grupo de militantes tão ativos quanto o PT? Como o PT e o PSDB estão atuando nos currais eleitorais de ACM no interior da Bahia? Como estão as preferências eleitorais nas principais faculdades paulistas e cariocas? Em quem os estudantes do Itamaraty, futuros diplomatas, estão apostando?

É certo que esses temas são todos periféricos às grandes questões que se colocam numa eleição. Mas serão eles menos importantes para se compreender um processo político e a mentalidade de um povo e os seus conflitos num determinado momento?

No Brasil, tem-se desistido com grande facilidade de uma função paralela e tradicional do jornalismo, que é de ser também uma espécie de "história feita no calor da hora" da vida do país. Ninguém mais planeja, escreve e edita uma reportagem _uma só, por mês ou por semana_ presumindo que esta seja lida no futuro como um documento sobre a sua época. Um documento não para enriquecer a antologia do jornalista que a escreveu, mas para fixar no tempo um extrato da vida objetiva e efêmera que ele teve paciência de observar e relatar.

Quando pensa na história, o jornalista se torna capaz de encarar com mais interesse a atualidade. Além disso, o compromisso com o futuro é garantia de sua responsabilidade com o presente. O estilo televisual domina cada vez mais o cotidiano brasileiro, transformando a vida social numa série de eventos efêmeros, numa produção sucessiva de detritos. Quando se fala que a TV está influenciando o estilo da imprensa, isso não diz respeito apenas ao modelo narrativo do jornalismo: a televisão afeta também as consciências _dos jornalistas e de todo mundo_, transfigurando o país num enunciado midiático sem consistência concreta.

Talvez esta indiferença pela "política" na ótica dos eleitores comuns e pela psicologia e o comportamento eleitoral dos cidadãos não seja uma característica apenas da imprensa nacional, mas no Brasil ela é bastante acentuada. De certa forma, os jornalistas em todo o mundo compartilham com os políticos uma certa presunção de classe, em decorrência do poder que uns e outros têm sobre a sociedade _e que acaba os distanciando dela, ao mesmo tempo.

Quando o líder de extrema direita Jean-Marie Le Pen chegou ao primeiro turno das eleições presidenciais francesas, em abril deste ano, os primeiríssimos a se surpreenderem foram os próprios jornais, que haviam confiado cegamente nas pesquisas de opinião que eles próprios encomendaram e que colocavam Le Pen fora do páreo.

Espantados com o resultado, os jornais trataram, entre o primeiro e o segundo turnos, de produzir reportagens que investigavam os eleitores da extrema direita de perto: quem eram, o que pensavam, como viviam, por que votavam em Le Pen? Para realizar tal trabalho, a imprensa francesa percebeu que precisava abandonar os corredores do poder e os cálculos estatísticos. Tinha que sair às ruas, viajar pelo país, ouvir as pessoas, enfrentar o "povo", essa entidade da qual se pode esperar o melhor ou o pior. Foi uma nova França que surgiu nas páginas dos diários _um país que se desconhecia.

O retrato social estampado pelos jornais não foi nada consolador, pelo contrário. Ele mostrou largas camadas da população francesa, sobretudo do interior do país, cheias de ressentimento e revolta por se julgarem ignoradas pelo poder político e econômico, em grande parte oriundas de famílias proletárias que haviam perdido status com as transformações industriais na França. O seu rancor se transfigurava em nacionalismo tradicionalista, em desprezo pela ordem política vigente e em ódio ao imigrante. A França não era o aprazível e opulento mundo democrático que se imaginava pelos índices matemáticos. É preciso tomar cuidado com a França.

Que Brasil sairá das próximas eleições? Que forças sociais estão de fato em elaboração por detrás dos números das estatísticas? Quais os conflitos e expectativas que estão surgindo neste momento no Brasil?

O jornalismo brasileiro precisa se afastar um pouco dessa visão oficial e oficiosa do processo eleitoral para devolver a política ao cidadão, em vez de mergulhá-lo o tempo todo na impotência dos fatos consumados. Precisa abandonar o seu mundo claustrofóbico e burocrático, que gera uma visão asfixiante da vida social no país, para deixar o leitor respirar a liberdade da história em suas páginas efêmeras.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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