TEXTO INÉDITO ANALISA IMPÉRIO


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 19 de abril de 1992


Sergio Buarque fala da política no Brasil imperial em prova escrita que lhe valeu uma cátedra na USP

Da Redação


A seguir trechos inéditos da prova escrita realizada por Sérgio Buarque de Holanda em 10 de novembro de 1958 no concurso para catedrático de história da civilização brasileira na Universidade de São Paulo. O tema foi "Conquista da Paz Interna e Conciliação Política".

Sérgio Buarque de Holanda

O golpe de Estado que d. Pedro não hesitara em dar, apesar daquela "timidez" que lhe atribuirá Feijó, é o motivo ou o pretexto para as sublevações e para toda a agitação política do Primeiro Reinado, a começar pela Revolução Pernambucana de 1824, cujos partidários, e não só estes, como o próprio chefe, Pais de Andrade, hão de invocar aparentemente sem grande sinceridade, já que de início, e apesar de algumas restrições formais, não lhe tinham oposto fortes embargos.
Mas nessa própria divisão política ia entrosar-se a divisão que, esta bem anterior à Independência, pois data das primeiras lutas nativistas, já nos séculos 17 e 18, separava os filhos da terra dos reinóis. O dissídio político confunde-se, não raro, com o dissídio nacional: o liberalismo tornava-se, por assim dizer, inseparável do nativismo eurófobo. Um português que em sua própria terra se distinguisse por atitudes revolucionárias converte-se no Brasil, invariavelmente, em corcunda.

(...) Não faltará entre os mais vivamente acusados de simpatias pela idéia da volta de d. Pedro I quem se filie aos poucos ao grupo liberal e é o caso de um Antônio Carlos, por exemplo, ou de seu irmão Martim Francisco. O próprio Paranaguá que tivera papel tão notável na dissolução da Constituinte de 23 alia-se por sua vez aos "liberais" no movimento da maioridade. Esse, contudo, mantém-se como, de certo modo, Aureliano Coutinho, o futuro Sepetiba, fora das filiações partidárias: faz "rancho à parte", como então se dirá.
Por outro lado, entretanto, o próprio desaparecimento da ameaça "caramuru", que desanuvia os horizontes, faz com que alguns elementos liberais tendam a inscrever-se entre os adeptos do "regresso". É a situação de Bernardo de Vasconcelos, por exemplo: o autor do projeto do Ato Adicional e mais tarde o paladino da chamada Lei Interpretativa. Que não só abandona, agora, a facção que ajudara a formar e ainda seus antigos companheiros de lutas, Feijó em particular, como se alia aos que pretendem fazer com que "pare o carro revolucionário". É com ele que tem início verdadeiramente o Partido Conservador.
É também a posição de Honório Hermeto Carneiro Leão, que iniciara sua carreira política entre os "moderados", como Evaristo da Veiga e o próprio Bernardo de Vasconcelos. Eleito deputado pela primeira vez em 1830, quando ainda não tinha completado 30 anos de idade, torna-se desde cedo um líder acatado e não menos temido, não só entre seus adversários, como entre os mesmos adeptos. Em contraste, porém, com Bernardo de Vasconcelos, mineiro como ele, o futuro marquês de Paraná é desde cedo adverso às soluções violentas. Se o primeiro, achacado e quase inválido, não treme em agir contra a lei, em caso de necessidade, e assim o dirá, o segundo mostra constantemente um respeito fiel à Constituição. Bernardo, aludindo, depois da Maioridade, ao seu próprio braço entrevado pela invasão de um moléstia que o deixa desfigurado no físico, mas de espírito sempre alerta e ânimo combativo, dirá que sua mão não tremerá diante da necessidade de subscrever um ato que, ilegal embora, sirva para consolidar o regime. Pode-se pensar, por contraste, no passo de Montesquieu, um dos nomes da Revolução, onde escrevia que em certos casos se faz mister contrariarem-se a lei escrita e os costumes estabelecidos, mas acrescentando, porém, que o legislador não o deve fazer "que d'une main tremblante".

(...) A ascensão dos liberais que se segue à queda do partido a que se filiara Honório e que se prolongará até 1848 não interrompe a obra de reação monárquica. Esta se faz independentemente das idéias que os mesmo liberais tinham esposado quando na oposição. Nenhuma das medidas que parecera impopular ao partido, como a lei interpretativa ou a criação posterior, melhor, o restabelecimento, do Conselho de Estado extinto como Ato Adicional, merece sua oposição efetiva. Essa atitude dos liberais, que, diga-se de passagem, não merece sempre a aprovação dos que dele não participam, corresponde bem à observação célebre de Holanda Cavalcanti, de que nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder.
Seria injusto afirmar-se que fossem irrelevantes as diferenças partidárias no tempo do Império e que a preeminência dos homens, do personalismo, prevalecesse constantemente sobre a das idéias. Embora a camada dos homens que participavam da vida política, eleitos e eleitores, fosse muito tênue comparada ao grosso da população, ou por causa dessa mesma teneridade, que restringia a ação política a uma elite naturalmente mais afeita ao jogo das idéias e dos interesses conscientes, e ao menos na aparência, do que ao juízo das paixões populares, é inegável que de um modo geral havia certa indistinção no círculo de idéias caras aos grupos divergentes. Não é certamente sem motivo que as transformações sociais mais importantes no tempo da monarquia foram, mal ou bem, realizações dos conservadores. O caso é frisante em 1850 com a supressão do tráfico de negros, sob a gestão de Eusébio de Queiroz, e não o é menos com a Lei do Ventre Livre, de 1871, obra mais contemporizadora, é certo, do que revolucionária, mas que figura entre as etapas da Abolição. A própria Lei dos Sexagenários, preparada pelos liberais, será promulgada por um gabinete conservador. E é ainda num governo conservador, o do conselheiro João Alfredo, que se promulgará a Lei Áurea. E ninguém dirá sem injustiça que o 13° de Maio foi apenas um ato contemporizador.

(...) De alguns estadistas cabe dizer que depois dessa fase em que, ao menos nas aparências, se ensarrilharam as armas, encontraram finalmente sua vocação. Um Wanderley, por exemplo, que quase apartidário nos seus inícios, mas de inclinações principalmente liberais, passará em seguida para as fileiras conservadoras, onde se manterá até ao ocaso do Império. (...)

A paz interna, a que visava principalmente a iniciativa encarnada por Honório Hermeto, é alcançada eficazmente e prepara o país para as lutas externas, sobretudo a Guerra do Paraguai, ao mesmo tempo em que torna menos ásperos os atritos políticos resultantes das reformas sociais e administrativas. Sob Caxias, que sucede Paraná na presidência do gabinete, prossegue, ao menos nominalmente, a Conciliação. Até quando? O problema que os contemporâneos hesitavam em resolver não se pode ainda hoje definir com precisão. Essa conciliação, o divisor das águas da política imperial, inaugura, com a transação, a síntese entre correntes díspares, não só o fortalecimento do regime para poder enfrentar novos embates, como uma nova divisão entre os grupos contrários. Nasce a Liga, depois Partido Progressista, que depois de 1868 se funde definitivamente com o Liberal. Deste, uma ala mais extremada se converterá dois anos mais tarde no Partido Republicano. A massa amorfa em que se teriam diluído os agrupamentos contrários, cuja contrariedade é condição necessária para o exercício da verdadeira democracia. Longe de preparar uma dissolução das forças divergentes, ajuda a fortalecer, terminada, as mesmas divergências, e aponta, de algum modo, o caminho do futuro.



© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.