ULISSES E JOSÉ

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 20 de junho de 1950

Neste texto foi mantida a grafia original

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Quem pretenda estudar os mais recentes desenvolvimentos da literatura de ficção no Brasil, não poderá restringir-se à consideração das obras diretamente escritas em português. Há traduções que, em virtude do esforço de adaptação e assimilação exigido, e ainda as suas possíveis repercussões na vida espiritual de um país, não reclamam menos do que elas a dedicação da critica.
O tradutor é o prisioneiro de uma forma que não seria naturalmente a sua, que não ajudou a constituir e que resiste, quase sempre, a toda tentativa para uma transposição literal em outra lingua. Na medida, porem, em que ele pôde assimilar a emoção originaria do autor, apropriar-se com feliz exito dos recursos, soluções e dicções, não raro insolitos, que aquela forma inclui, é licito dizer que participou a seu modo do ato de criação. E que seu sacrificio, por severo que seja, representa o preço de liberdades novas e novos descobrimentos. Pois uma obra que forneceu valiosos elementos de expressão a certo idioma não deixará, traduzida, de produzir resultados semelhantes no idioma do tradutor.
O caso, por exemplo, da versão brasileira, ainda em curso, da obra mestra de Proust, poderá vir a ser singularmente importante desse ponto de vista. Ainda é cedo para se tentar predizer até onde esse empreendimento editorial há de significar exito de primeira grandeza na historia de nossa literatura, em particular de nossa literatura de ficção. Baste-nos observar, por ora, que ele já acarretou um interesse raramente provocando, até hoje, por autores nacionais. Interesse que se espelha bem na recente publicação, por uma revista de moços, da coletanea intitulada Proustiana Brasileira. E que permitiu a um critico ilustre —o sr. Alvaro Lins— dedicar, sem maior escandalo, a "tecnica do romance em Marcel Proust", à tese com que se apresentará a concurso para uma das cadeiras de Literatura no Ginasio Pedro II. Os regulamentos de concurso impedem-me de apreciar de publico essa contribuição, mas sua simples presença já é suficientemente impressiva para que se deva registrá-la de passagem.
Proust foi um dos dois grandes inovadores da tecnica do romance em nosso seculo. O outro inovador, mais radical, certamente, e em alguns aspectos, mais fertilizante, não conseguiu alcançar entre nós as mesmas honras. Sem duvida por que a obra verdadeiramente revolucionária de Joyce —o Ulisses— (já não me refiro a Finnegans Wake, publicada mais tarde e a bem dizer intraduzível) aguarda até hoje o editor energico ou melhor o tradutor heróico e bem dotado que se disponha a apresentá-la ao publico da lingua portuguesa.
Na Exposição Joyceana, organizada em Paris pela livraria La Hune, de St. Germain-des-Prês e que me foi dado percorrer há poucos meses, destacava-se num mostruario, pelas cores gritantes da capa, a conhecida versão brasileira de outro livro de Joyce: Retrato do Artista quando jovem. E era o unico sinal manifesto de que o renome do grande irlandês já alcançara nossas terras. De Ulisses apresentavam-se as versões francesas, alemã, tcheca, sueça, uma das japonesas (há nada menos de três, ao que parece) e prometiam-se para breve uma italiana e outra dinamarquesa. Os elaboradores do catalogo impresso lamentavam não ter sido possível exibir-se a russa, a espanhola e a portuguesa, que diziam não possuir, embora admitindo de modo expresso que "existem sem duvida".
Houve aparentemente engano com relação à suposta versão portuguesa; o primeiro volume de James Joyce Yearbook, impresso às vesperas de inaugurar-se a exposição, e que não deixa de mencionar a tradução espanhola publicada em Buenos Aires há dois anos, diz apenas que há contrato assinado para um edição portuguesa em preparo, sem esclarecer, todavia, se em preparo no Brasil ou em Portugal.
As dificuldades que oferece o problema de traduzir-se uma obra como Ulisses, de leitura aspera, mesmo para quem conheça bem a lingua do original, existem certamente e são notorias. Não acredito porem, que sejam insuperaveis. Para tanto, a solução mais plausivel seria, talvez, um bom trabalho de equipe, incumbindo-se cada tradutor de três ou quatro episodios. Os inconvenientes que apresenta em geral este sistema não seriam graves no caso, uma vez que o proprio Joyce, com sua lamentavel virtuosidade, deu deliberadamente a cada um dos dezoito episodios, que compõem seu livro, um estilo e um ritmo diferentes.
Por outro lado o enriquecimento que semelhante iniciativa poderia proporcionar à expressão literaria e particularmente à arte e tecnica da novela entre nós pagaria bem as dificuldades. Parece certo que muito da novidade estilistica e tecnica do moderno romance norte-americano (com o monologo dramatico, por exemplo, ou estrutura de contraponto, que Dos Passos iria empregar e desenvolver) teria sido impossivel sem o previo exemplo de Joyce, acomodando a lingua inglesa à manifestação de novas e valiosas experiencias.
A mesma causa, ou quase pode-se dizer que tem ocorrido em terras onde a importancia de tal exemplo só se tornou plenamente acessivel graças a boas e oportunas traduções de Ulisses. Numa das paredes da sala de exposição de La Hune, exibia-se a imagem de uma arvore vasta e generosa, onde os galhos figurava as obras das modernas literaturas que se conceberiam mal sem o contacto fecundante da paisagem joyciana. Nela apareciam, naturalmente em primeiro plano, nomes de livros e autores anglo-axões e franceses (Faulkner Heminhway, Wolfe, Virginia Woolf, Henry Miller, Larbaud, Celme, Sartre...)., mas não faltavam contribuições de outros paises, da Alemanha principalmente, onde os romances de um Alfred Oblin (Berlin Alexanderplatz) ou de um Hermann Brech (a trilogia dos Sonanbulos) pe/rtencem francamente à mesma paisagem.
Descontado o que possa entrar de caprichoso ou excessivo em algumas dessas filiações, parece inevitável pensar-se que tudo isso incluiu uma parcela apreciavel de verdade. E não é certamente demasiado dizer-se da influencia joyciana que tem sido quase tão decisiva na formação da moderna prosa de ficção quanto a de Rimbaud o foi na moderna poesia.
De outra obra ilustre ouso dizer que tanto Ulisses poderia ser traduzida, sem grave inconveniente, através de um trabalho de equipe, se essa mesma obra não tivesse aparentemente encontrado, ao menos para os primeiros volumes, tradutor quase exemplar. Refiro-me a José e seus Irmãos, de Tomas Mann, que vem saindo em tradução portuguesa do sr. Agenor Soares de Moura, editada pela Livraria do Globo.
O romancista alemão é algumas vezes lembrado ao lado de Proust e Joyce, como um dos inovadores do romance contemporaneo. Ele proprio declarou, em certa ocasião, a proposito das historias de José, (nos Neuen Studien, Estocolmo, 1948, 9. 163) que pretendera expressamente renovar a refrescar a narrativa biblica, servindo-se para isso "de todos os meios modernos, tanto espirituais como tecnicos". E se é certo que apresenta, com aqueles seus emulos diferenças notaveis, não parece facil se dissimularem os pontos de contacto.
Um deles está justamente em uma extrema virtuosidade nos dominios da linguagem, que o leva, quando necessario a matizá-la conforme as circunstancias da narrativa. Em Proust, o gosto de pasticho teria, segundo sua propria confissão, a função de libertá-lo de influencias alheias que julgava opressivas. Mas um critico atento não deixaria de notar como essa mesma habilidade lhe serviria para reproduzir, com nitidez convincente não apenas os habitos linguisticos como a propria modulação da voz dos personagens. Em Joyce, a parodia chega a incorporar-se deliberadamente à arquitetura da propria obra. E de tal modo que uma das cenas mais carateristicas a do hospital que compõe o decimo quarto episodio de Ulises (Oxen of the Sun) não passa, em realidade de uma antologia de parodias, envolvendo desde o anglo-saxão até o moderno slang.
Já em Mann, a capacidade imitativa responde a um tipo de sensibilidade onde não há lugar para a impersonalização deliberada do autor —um dos dogmas, ao contrario, da estetica joyciana— ou para sua aparente passividade em face dos acontecimentos ou das impressões, como em Proust. O esforço que empreende para apropriar-se de um mundo que não é naturalmente o seu —a tentativa entre outras, de absorção da "atmosfera" goethiana, no romance Carlota em Weimar— não significa um perder-se nesse mundo e não exclui uma participação ativa do autor na propria criação.
Mas pode significar —e significa, seguramente, na evocação do ambiente bíblico das historias de José— uma realização artistica e estilistica das mais audaciosas de nossa epoca. É talvez cedo para se pretender que a realização está plenamente à altura da intenção ou das expectativas do autor, o que esta obra pode situar-se com toda justiça ao nivel de outras, mais arrojadas na aparencia; no fundo, porem, nascidas de uma ambição mais discreta e bem mais em harmonia com os modernos idolos da tribo. Mas o esforço que ela representa e os resultados quer, bem ou mal, já alcançou, reclamam consideração. A eles, mas sobretudo à tentativa de apresentá-los a leitores brasileiros, será dedicado o proximo artigo desta seção.


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