KAFKIANA I

Publicada na Folha da Manhã, São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 1952.

Neste texto foi mantida a grafia original

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

A bibliografia brasileira sobre Franz Kafka ainda está longe de corresponder ao extenso interesse e à influencia crescente que seus escritos não cessam de provocar entre nós nestes ultimos anos. No momento só consigo lembrar-me, entre os trabalhos escritos em lingua portuguesa sobre o autor de O Processo, dos dois ou três artigos que, em epocas diferentes, lhe consagrou o sr. Otto Maria Carpeaux - um deles incluido no volume A Cinza do Purgatorio.

A verdade, no entanto, é que as idéias desenvolvidas nesses artigos nasceram e cresceram longe do Brasil, a um tempo em que a curiosidade suscitada por aquele escritor ainda não se alastrara para muito alem dos paises da Europa Central. É significativo que um dos trabalhos de Carpeaux publicado há quase vinte anos - bem antes, por conseguinte, de tornar-se um dos nossos - já figure na magra resenha de fontes impressas apenas a um ensaio interpretativo tão necessario até hoje aos devotos de Kafka quanto o é, por exemplo, o de Léon Pierre Quint aos admiradores de Marcel Proust ou o são, aos de Joyce, os de Gorman e Stuart Gilbert - a longa dissertação apresentada por Herbert Tauber à Universidade de Zurique (e também na relação bibliografica oferecida por outro companheiro inevitavel daqueles mesmos devotos: o volume de ensaios impressos há alguns anos, em inglês, pela New Directions de Nova York sob o título de The Kafka Problem).

É certamente um privilegio para a seita dos kafkianos brasileiros, tão ardentes, em geral, posto que menos numerosa, do que a dos proustianos, o poderem contar, para a boa inteligencia de um mestre notoriamente dificil e esquivo, com a prestimosa assistencia de quem aprendera a conhecê-lo quando sua figura ainda não tinha sido atingida, como hoje, pelas deturpações da moda.

Contudo essa moda, ou, como já se disse nos Estados Unidos, esse Kafka-Boom, que chegou a estimular uma legião nem sempre digerivel de interpretações contraditorias, teve ao menos a grande virtude de exigir, e tornar possivel, a divulgação de novos documentos capazes de esclarecer uma das criações mais singulares de nosso tempo.

Assim é que, ainda no ano passado, puderam imprimir-se em Francoforte sobre o Meno, quase simultaneamente com o ensaio tão sugestivo e revelador de Günther Anders (Kafka-Pró e Contra. Monaco, 1951) as admiraveis Conversações, recolhidas e postas em ordem por um obscuro admirador de Kafka: Gustav Janouch. E agora, nestes ultimos meses, tornou-se enfim possivel conhecer na integra um texto que ilumina de modo decisivo toda a vida e a obra do escritor: sua "Carta ao Pai" só acessivel, até aqui, através dos poucos fragmentos insertos por Max Brod em sua conhecida biografia. As razões que por tanto tempo tinham desaconselhado essa divulgação integral deixaram de prevalecer - o proprio Brod explica-o no livro que serve de complemento à biografia: Franz Kafka Glauben und Lehre - desde que desapareceram as três irmãs de Kafka, vitimas do regime nazista.

Enquanto não se completa a publicação dos dez ou doze volumes que hão de formar sua obra completa, pode-se pensar que o simples conhecimento de textos como esses servia para dar-nos de autor tão discutido e diversamente interpretado, uma visão mais límpida.

Servirá? Na realidade a arte de Kafka desafia com insistencia os que, afoitamente, cuidam em reduzi-la a formulações lapidares. Seu alcance universal provem, de fato, da intensidade com que padeceu e pôde exprimi-la, dando-lhe por isso mesmo valor simbolico, uma experiencia singular; mas esses mesmos motivos tornaram-na irredutivel a explicações e interpretações universalmente validas. Chegamos, em outras, palavras, ao que só na aparencia constitui um paradoxo: de sua singularidade depende sua universalidade; mas essa mesma singularidade só pode fazer-se geralmente inteligivel na forma obliqua e enigmatica de que o proprio autor se vale para manifestá-la.

De onde o erro comum a todos os que tratam de retirar de sua obra uma especie de filosofia, ou - como se dizia há vinte anos - uma verdadeira "mensagem" espiritual. Se isso fosse possivel ou necessario, quem duvidaria que ele mesmo o teria feito de preferencia a tornar-se objeto das mais caprichosas especulações? O que ocorre com a maioria destas é que são sugeridas pela leitura de seus escritos, mas, em realidade não partem deles. Procedem de alusões fragmentarias e vagas que o espirito de sistema, ampliando-se desmedidamente, converte com frequencia em construções poderosas, coerentes em todas as suas partes e, ao mesmo tempo, falsificadoras. Embora sugestivas, não raro e ricas em conteudo, muitas delas pertencem ao especulador, muito mais do que ao especulado. Não é de estranhar, por conseguinte, se cada qual, decifrando a seu modo e segundo seu gosto, aquelas expressões alusivas, busque alistá-lo apaixonadamente em sua propria facção. De modo que temos hoje em Kafka um filosofo da existencia, parente chegado de Kierkegaard e Heidegger: é talvez o que encontramos mais insistentemente nas interpretações modernas.

Por outro lado, entre os sobreviventes do surrealismo, o proprio André Breton inclue-o com destaque em sua antologia do humour negro. Há ainda o adepto da chamada "teologia da crise" ou o que conduz até aos extremos limites certos pressupostos do jansenismo, do protestantismo, especialmente do calvinismo, retomando e enriquecendo, em nossos dias a tradição de Bunyan. Outros, especialmente H. J. Scheps, porfiam em assinalar nas suas obras certos traços que provém da teologia e da mistica judaica da Diaspora. Max Bord, por sua vez, denuncia os que como Klossowski e em geral os tomistas franceses, procurariam atraí-lo para o pensamento catolico. O ensaista argentino Ezequiel Martinez Estrada, em artigo inserto em The Kafka Problem tenta filiá-lo à velha sabedoria chinesa e acredita que o taoismo seria o unico precedente conhecido para sua concepção do mundo. E embora certa publicação comunista tivesse organizado um amplo inquerito intitulado "Devemos Queimar Kafka?" não faltou, entre autores de esquerda e mesmo marxistas - um Max Lerner, um Slochower, um Burgum - quem acenasse para o carater intensamente problematico, senão social, de uma arte que forneceria às novas gerações o instrumento capaz de quebrar o mar de gelo abrigado em seu intimo.

É significativo que o autor de um artigo para o Quartly Journal of Literature onde se criticam de modo bastante plausivel os exegetas "cabalistas" de Kafka, o critico Charles Neider se viu envolvido, por sua vez, numa nova e poderosa "cabala" - a da psicanalise - logo que expandiu seu trabalho no livro sugestivamente intitulado The Fronzen Sea (Nova York, 1948). A suspeita de que Kafka teria a obsessão da psicanalise e dos simbolos freudianos, "deliberadamente" introduzidos em seus escritos, suspeita de todo gratuita, e que a leitura dos Diarios, só agora publicados na integra, está longe de autorizar, conduzui-o incidentalmente a esse tipo de investigações. No caso de outro norte-americano, de Paul Goodman - autor de Kafka's Prayer, Nova York, 1947 - a psicanalise é, ao contrario, não só um ponto de partida mas um metodo consistente segundo ao longo de quase trezentas paginas. E não são, esses, senão alguns dos exemplos mais significativos dos extremos a que, especialmente em terras de lingua inglesa, têm podido chegar, a respeito, a critica dos psicanalistas. É preciso admitir, no entanto, que a obscuridade da expressão representa neste caso quase um convite a esse tipo de inquirições. E em realidade o "cabalismo" dos interpretes de Kafka parece ter começado com o primeiro deles, seu amigo dileto e responsavel pela publicação postuma de seus escritos. Que um autor pode ser inconscientemente atraiçoado pelos que lhe estiveram mais proximos, tanto quanto o seria por estranhos, não há nisto nada de novo. O intenso convivio das ideias alheias inclina-nos, com frequencia, a associá-las às proprias e o pensamento longamente solidario pede, ao cabo, certo grau de reciprocidade. O caso de Elisabeth Forster Nietzsche erigindo seu irmão, contra as evidencias cada vez mais tangiveis, num anti-semita rancoroso e até numa especie de hitlerista avant la lettre, é apenas um dos mais recentes e instrutivos. Não seria tambem um pouco, o caso de Max Brod, quando insiste por sua vez em frisar na obra de Kafka a parte do judaismo e especialmente do sionismo?

É caracteristico que essa insistencia parece fortalecer-se na medida em que uma carga emotiva maior vai pesar sobre as proprias convicções sionistas de Brod. Menos sensivel na biografia de 1937 ela é manifesta no romance O Reino Encantado do Amor, onde a lembrança de Kafka irá animar a figura do personagem Garta. Mas ainda aqui o que havia de menos definido na religiosidade e nos ideias de Garta-Kafka irá dissipar-se por completo na figura do irmão imaginario que lhe sobrevive: Eric Samuel retoma o pensamento do morto para completá-lo num sentido positivo, quer dizer, mais fiel às convicções do proprio romancista. Já em seu mais recente trabalho interpretativo e este francamente polemico, Brod vai quase ao ponto de transformar Franz Kafka em um novo profeta de Israel.

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