NÓS, O PISTOLEIRO, NÃO DEVEMOS TER PIEDADE

Publicado na Folha de S. Paulo, domingo, 1º de julho de 1973.


MOACYR SCLIAR

Nós estamos numa pequena cidade do Texas, em 1880.

Nós somos um temível pistoleiro.

Nós estamos num bar, Tomamos uísque a pequenos goles.

Nós temos um olhar soturno. Passado terrível. Muitas mortes. Remorsos.

A porta se abre.

Entra um mejicano chamado Alonso. Dirige-se a nós, o pistoleiro, com desrespeito. Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar as esporas.

Nós continuamos bebendo o uísque a pequenos goles.

O mejicano dá-nos uma bofetada.

Quer morrer, este Alonso.

Nós não queriamos matar mais ninguém.

Abriremos uma exceção para Alonso, cão mejicano.

Combinamos o encontro fatídicopara o dia seguinte, ao raiar do sol.

Alonso dá-nos mais uma bofetada e vai-se.

Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. Depois atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos.

Caminhamos lentamente, arrastando os pés, até nosso hotel.

A população olha-nos. Sabem que somos um temível pistoleiro, Pobre mejicano, pobre Alonso.

Amanhã. Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos sem ao menos tirar as botas.

Ficamos a olhar o teto, a fumar, a pensar. Fumamos muito. Pensamos pouco: muitas mortes. Remorsos.

E já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos cinturão. Examinamos revolveres. Inspeção de rotina, completada em poucos minutos.

Descemos. A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos a população. O vento sopra, levantando turbilhões de poeira.

Mesmo vento, mesmo oeste. Rotina. Alonso já nos espera. Quer morrer, este mejicano.

Está rindo. É manhã. Amanhã não rirá.

Colocamo-nos frente a ele. Um pistoleiro de olhar soturno, passado terrível, muitas mortes.

Vemos um mejicano.

Pobre diabo.

Comia tortillas, já não comerá.

Tem mulher e cinco filhos pelo que informaram, um pedaço de terra e uma guitarra. A mulher e os filhos enterrarão o cadáver, fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz, as trouxas de roupa à cabeça.

A mulher ficará tuberculosa.A filha mais velha será prostituta.Um filho ladrão. Outro morrerá. E outro morrerá. E outro morrerá.

Os olhos se nos turvam. Remorsos.

Uma lágrima cai sobre o chão poeirento.

O mejicano já não ri. Aguarda o momento de ser morto.

Já é manhã, mas ainda não o executamos.

Pobre Alonso. A unica exceção. Uma bofetada, outra bofetada.

Ninguém deu duas bofetadas num pistoleiro.

Não comerá mais tortillas. Os dentes podres daquele homem. O olhar aterrorizado. Nosso olhar turvado: novas lágrimas, lágrimas frescas.

Não conseguimos sacar nossos revolveres, como de rotina.

E assim vamos vendo Alonso puxar sua arma, vamos ouvindo o disparo, podemos até imaginar a bala vindo ao nosso coração, sentimos dar intensa, lento tombamos.

Morremos, diante do riso de Alonso, o mejicano.

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