MOACYR
SCLIAR
O
dono da gráfica-editora recebe a visita de uma senhora. O dono
da gráfica-editora é um homem ainda jovem, de grandes bigodes
e calva precoce; veste-se desleixado: calças quadriculadas e uma
camisa floreada que deixa entrever a barriga peluda. A senhora,
em contraste, apresenta-se alegre e discreta no seu tailleur cinza.
Traz consigo, numa bela pasta de marroquim, um manuscrito: poemas.
Quer publicá-los, diz, e é neste momento (mas só neste momento;
daí em diante não mais) que sua voz treme, de maneira quase imperceptível.
Ao
dono da gráfica-editora a solicitação não surpreende. O pai, de
quem é herdeiro e sucessor, editava livros de poesias; tiragens
limitadas, exemplares de luxo, destinados a poucos e selecionados
leitores. Por esse trabalho cobrava bem, ainda que o fizesse,
segundo afirmava, não pelo dinheiro, mas sim pelo prazer de difundir
a cultura.
Um
prazer que o filho não comparte. Não entende de poesia, nem de
literatura; na verdade, pouco entende de gráfica; tanto que os
negócios têm ido mal, muito mal. Contudo, julga-se esperto; há
pouco, quando a senhora entrou, teve um pressentimento: hoje é
o meu dia. Agora, ao examinar as páginas manuscritas (uma bela
letra, aliás), está mesmo convencido: é o seu dia, a sua chance,
a oportunidade de deslanchar, de tirar o pé do barro, Porque os
versos da mulher falam em paixão desesperada; e ela é rica, vê-se.
Uma viúva rica, ou uma divorciada rica. Uma rica herdeira, uma
mulher de meia idade, que escreve versos apaixonados, e que deseja
vê-los publicados: pagará qualquer preço.
Como
não, diz o dono da gráfica, vamos publicar, sim; vamos produzir
uma bela edição, uma obra de arte. É exatamente o que pretendo,
diz a senhora. Uma obra de arte, se possível, com ilustrações.
Claro, apressa-se a dizer o dono da gráfica, com ilustrações,
com lindas ilustrações, tenho o homem certo para ilustrar poemas.
E dá outros detalhes: fará a composição em tipos especiais, o
papel será da melhor qualidade. Naturalmente, adianta, cauteloso,
mas sem poder conter certa ansiedade, não sairá barato. Oh, apressa-se
a senhora a dizer, eu sei que não sairá barato, mas isto não importa,
dinheiro não é o problema. O dono da gráfica mal pode disfarçar
um sorriso. Um aperto de mãos (como é macia, a mão dela) sela
o pacto e já no momento seguinte ele está pedindo um adiantamento;
é bom comprar o papel, os preços vão subir. Sem vacilar ela preenche
o cheque e vai-se.
Esse
dinheiro, ele o aplica. É o que fará daí por diante: pede dinheiro
para o ilustrador, aplica; para os serviços de composição, aplica;
para os convites de lançamento, aplica, aplica, aplica. Cada vez
que faz um pagamento, a senhora pergunta pelo livro. Vai indo,
ele responde, não se preocupe.
O
dinheiro rende bem, ele paga algumas dívidas e pode até comprar
roupas novas. Mas está inquieto. É que... apaixonou-se pela mulher.
Não é que foi se apaixonar, mesmo? Logo ele, um homem de tanta
experiência, um homem que já perdeu a conta das amantes que teve;
logo ele foi se apaixonar. E por uma senhora, uma mulher que está
muito acima de sua condição social e (o que é pior) da qual só
esperava tirar proveito.
Aparentemente, ela de nada se apercebe. Telefona, mas só quer
saber do livro. Uma tarde vem à gráfica para ver como está indo
o trabalho. Não há ninguém, os dois velhos tipógrafos já foram.
Ele coloca sobre a mesa do escritório alguns grosseiros esboços
da capa, e enquanto ela os examina, aproxima-se por trás. Abraça-a.
Ela não resiste, tudo o que pede é que ele seja gentil. Ali mesmo,
no rasgado sofá do escritório, ele a possui. E depois ali ficam,
ela fumando em silêncio. Ele quer falar, quer contar, contar coisas,
quer descrever uma infância infeliz, uma adolescência atormentada.
Mas ela, alegando compromissos, despede-se e se vai.
Continuam
se encontrando num motel discreto. Sim, são amantes; mas ela só
quer saber do livro, como está indo a impressão, quando será lançado.
Ele até se irrita com tanta insistência: por que falar do livro?
Por que não falar de amor? Ela alega que tem pressa, quer fazer
o lançamento logo, está com viagem marcada para a Europa. Uma
noite, discutem. Ela lhe dá um ultimato: quer o livro no dia seguinte.
Caso contrário, polícia.
Ele
sai do motel furioso, ofendido. Ela quer o livro; pois o terá.
Vai até a gráfica; ele mesmo fará a composição. É pouca coisa,
uns versinhos. O trabalho, porém, revela-se extraordinariamente
difícil. Há coisas que sequer entende; que raio de palavra é esta?
E esta outra aqui, por que a separou desse jeito? Penosamente,
vai avançando na tarefa, até que de repente - o dia já clareia
- uma revelação: num átimo compreende tudo, entende o que ela
quer dizer com essas estranhas palavras. Sim, é de amor que ela
fala, e fala bonito; tão bonito que lágrimas de alegria lhe correm
pela face. Sim, ele, um grosso, está comovido, comovido pela beleza
dos poemas. Numa tira de papel rabisca uns versos; parecem-lhe
bons; coisa simples, mas boa. Corrige uma palavra aqui, outra
ali. E então, uma idéia lhe ocorre: acrescentará seus versos à
composição do livro, que será de autoria dos dois. Uma coisa simbólica
e oportuna; porque, já decidiu, vai pedir a mão dela em casamento.
De
manhã, dirige-se à casa dela. A empregada pede que espere no gabinete,
a senhora já vem. Ele fica andando de um lado para outro, impaciente.
O
telefone toca. Com a segurança de quem já se sente em sua própria
casa, ele atende.
Voz
de homem. Pergunta pela dona da casa. Não está, responde ele,
desabrido (daí por diante ela não estará para ninguém). Faça um
favor, diz o homem, avise à senhora que o contrato está pronto.
Que contrato, pergunta o dono da gráfica, surpreso. O contrato
com nossa editora, responde o homem, achamos o livro dela muito
bom, vamos publicá-lo.
Ele
pousa maquinalmente o fone no gancho e ali fica imóvel, siderado.
Mas então ela aparece, mais elegante que nunca, numa bela túnica
floreada.
Ele
faz um esforço, recupera-se. Ela sorri também. Quem era, pergunta
num tom casual.
Engano,
responde ele. Era engano. Engano, murmura ela. Fica imóvel, o
olhar perdido, o rosto iluminado por um sorriso. Ele sabe no que
ela está pensando; que aí está um bom título para um poema. "Engano".