INCALCULAVEL MASSA POPULAR RENDEU SUAS HOMENAGENS A MONTEIRO LOBATO

Publicado na Folha da Noite, terça-feira, 6 de julho de 1948.

Neste texto foi mantida a grafia original
Governo e povo acompanharam até o cemiterio da Consolação os restos mortais do querido pai do Jeca Tatu — decretado luto oficial — às expensas do estado os funerais do ilustre escritor

Realizou-se ontem, às 15 horas, no cemiterio da Consolação, o sepultamento de Monteiro Lobato, saindo o feretro da Biblioteca Municipal. Seus restos foram carregados até a ultima morada por seus amigos e admiradores, acompanhados por incalculavel multidão.
As ruas nas proximidades da Biblioteca tiveram o transito interrompido cerca de trinta minutos, tal a massa humana que se formou para acompanhar os funerais. Momentos antes da saida do feretro, o governador do Estado, acompanhado dos seus secretarios João de Deus Cardoso de Melo, da Justiça, José Fajardo, do Trabalho, e Astolfo Pio Monteiro da Silva, bem como o sr. Paulo Lauro, visitaram, pela ultima vez, o corpo do grande escritor, e conduziram o caixão até a rua.
O feretro foi acompanhado por altas personalidades politicas e sociais e por grande massa de pessoas. No cemiterio da Consolação Enquanto os restos de Monteiro Lobato seguiam para o cemiterio da Consolação, pela rua do mesmo nome grande numero de pessoas comprimia-se à entrada daquele campo santo, notando-se homens, mulheres, velhos e crianças que ali permaneciam numa derradeira homenagem.
Ao lado do tumulto do ilustre escritor encontrava-se incorporada a Academia Paulista de Letras, o ator Procópio Ferreira, jornalistas e amigos do grande morto. Nessa ocasião, reverenciam a memoria de Monteiro Lobato, pelo microfone das emissoras paulistas, os srs. Altino Arantes, Roberto Moreira, Soares de Melo e Spencer Vampré.
O ator Procópio Ferreira, visivelmente emocionado, pronunciou as seguintes palavras ao microfone:

"A sem-vergonhice nacional está de parabens com a morte de Monteiro Lobato, grande homem, grande espirito, grande artista. Não sabemos o que mais admirar nele: se o homem de bem ou se o artista perfeito. Em meu nome e no de todos os atores do Brasil, trago aqui o nosso adeus comovido."

Momentos depois, acompanhados de verdadeira multidão, chegavam os despojos de Monteiro Lobato, que recebeu, ali, das mulheres, homens e principalmente crianças, uma grande consagração. Fala o secretario da justiça Quando chegou o corpo de Monteiro Lobato, a multidão entoou o hino nacional, falando em seguida, em nome do governo do Estado, o sr. João de Deus Cardoso de Melo, secretario da Justiça. Prestando uma derradeira homenagem ao ilustre morto, disse s. ex. que o autor de "Emilia" havia encarnado durante toda sua vida de escritor, a reação ao espirito conformista e a noção bem clara dos homens e responsabilidade. "Dessa forma — salientou — transformou sua pena maravilhosa numa espada fulgurante e ponteaguda que lhe serviu de combate aos hipocritas e para rasgar os tumores da nossa incuria e da nossa preguiça." Depois de referir-se à obra de Monteiro Lobato, o sr. João de Deus Cardoso de Melo disse que o ilustre morto não fôra compreendido, talvez, pela sua epoca e por muitos da sua geração de ceticos. Então voltou-se para as crianças com uma fé toda particular, escrevendo livros maravilhosos e ensinando-as, não obstante o travo de fel que havia em sua vida, que foi uma luta constante contra a inercia e a filosofia do "deixar como está para ver como fica." Construiu para as crianças, num grande Sonho. "Deixemo-lo dormir com o seu sonho — concluiu — o seu sonho maravilhoso com o Brasil de amanhã."

DISCURSO DO SR. FRANCISCO PATI

Falou em seguida, em nome da Academia Paulista de Letras, o sr. Francisco Pati, que pronunciou o seguinte discurso:

"Monteiro Lobato: Está de luto o 'Sitio do Pica-pau Amarelo'. Vejo dona Benta de lenço aos olhos, enxugando lagrimas. Junto dela, cosido às suas saias, o visconde de Sabugosa, muito preocupado com a atitude a assumir, não sabendo bem qual deva ser a de um filosofo em presença da morte. Pedrinho e Narizinho, travessos mas de bom coração, andam aos soluços pelos cantos. Tia Anastácia, esfregando os olhos com a ponta do avental, mal contem o desespero de Emilia, a mais endiabrada ontem, hoje a mais aflita.
"Tantas coisas lhes ensinaste. Monteiro Lobato, mas de uma te esqueceste. Não lhes disseste nunca o que poderia acontecer no dia em que desaparecesses, isto é, no dia em que aquele 'Sitio' e aqueles irriquietos calungas viessem a perder-te.
"Eu sei o que perdeu a gente daquele 'Sitio'. Sei, tambem, o que perdeu o Brasil. Passas à posteridade aureolado de um grande titulo: criador da literatura brasileira para crianças. O 'Sitio' de dona Benta não é só um pedaço de terra; é, principalmente, um pedaço da vida. Dentro dele está a nossa infancia. Ele é a nossa infancia. Pedrinho, Narizinho, Emilia, Sabugosa, Tia Anastacia, ou somos nós, ou são as sombras amigas que nos rodearam na meninice. Tiveste a felicidade de criar, com a imaginação, um grande pequeno mundo, — o mundo da curiosidade infantil.
"Não me parece necessario, depois disso, arrolar e invocar as demais virtudes de espirito e de sentimento que fizeram de ti, em São Paulo, uma figura à parte. Não me parece necessario, efetivamente, lembrar que és o autor de "Urupês", de onde emerge, como um anatema, Jeca-Tatu, e de tantos outros livros de literatura ou de idéias, de simples correspondencia ou de combate, nem que és ainda o autor das mais belas cartas até hoje escritas no país, cartas de amizade, cartas de louvor ou de critica, cartas politicas. Nos momentos infaustos da nossa vida social e politica, uma carta que escrevesse valia por um libelo. De dentro de tuas quatro paredes, num bairro paulistano, atiravas contra os insensatos ou os mediocres as suas satiras, como Victor Hugo, dos rochedos de Guernesey, as suas blasfemias biblicas.
"Não me parece necessario lembrar que eras tambem, um homem de grande coragem civica, e que algumas de tuas observações politicas são epitafios no bronze!
"Criador da literatura para crianças, não é tanto o serviço prestado às letras que me comove, mas o que prestaste, principalmente, à própria nacionalidade. É obra de reivindicador a tua. Reivindicaste para as tradições brasileiras, para as nossas lendas e os nossos simbolos, as nossas crianças e as nossas superstições, a nossa geografia e a nossa historia, o direito de encher a imaginação das crianças, no momento em que elas se libertam do instinto e ainda não receberam a visita da inteligencia. O 'Sitio do Pica-pau Amarelo' sucede, assim, na historia das nossas letras infantis, às florestas européias povoadas por duendes e deuses capripedes.
"O exito da tua dedicação à criança, como produtor de livros ensinou, igualmente, aos teus imitadores ou discipulos, que ser infantil não é ser ridiculo. A criança não é um debil mental. No Brasil, a criança, é um prodigio de sagacidade e de perspicacia, de vibração interior e de exaltação afetiva. Ela é, até certo ponto, publico mais exigente que o outro.
"A criança brasileira sabe distinguir o bom e o mau escritor, o que escreve por vocação e o que escreve por mercantilismo. Quantos são, efetivamente, os que te fazem companhia, Monteiro Lobato, na estima de Liliput?
"É o que pergunta ao Brasil, pela minha boca, a Academia Paulista de Letras, inconformada com a tua perda. A convivencia com as crianças do teu mundo interior tornou-te exigente na escolha dos teus amigos e tal exigencia pôde parecer, às vezes, horror à sociabilidade, quase misantropia. Nós que te tivemos ao lado na Academia Paulista de Letras, senão em todas as horas pelo menos em algumas de importancia decisiva para a vida do nosso gremio, sabemos que eras, no fundo, uma grande ternura desejosa de exercer-se em beneficio dos homens. Se nem sempre o conseguiste, a culpa não foi tua e sim dos homens.
"A Academia Paulista de Letras entrega o teu corpo à terra de São Paulo, como aos braços de mãe orgulhosa de tão ilustre filho. Dorme em paz."

Outros oradores A seguir, o sr. Otaviano Alves de Lima pronunciou a seguinte oração:

"Falo em nome dos amigos pessoais mais intimos de Monteiro Lobato. Tomado de grande emoção, peço que me perdoem. O momento não comporta senão poucas palavras.
"Monteiro Lobato foi um dos maiores brasileiros. Uma verdadeira gloria nacional. Ninguem mais entranhadamente amou esta terra do que ele.
"A materia, por certo, desaparecerá, mas o seu espirito aqui fica imperecivel, mais vivo do que nunca, na memoria e na admiração de todos nós. Como todos os genios, é daqui por diante que Lobato vai realmente produzir. É mais uma das ironias da sorte..."

Falaram ainda os srs. Geraldo N. Serra, em nome da Associação Paulista de Imprensa; Salomão Jorge, em nome da Assembléia Legislativa Estadual; Pedro Pomar, em nome dos comunistas brasileiros e no do sr. Luís Carlos Prestes: Emílio Fontana, em nome do Congresso Infanto-Juvenil de Escritores, que relembrou a atuação do ilustre escritor à frente daquele conclave; Rossini Camargo Guarnieri, em nome dos poetas paulistas; Antonio Teixeira em nome da Associação dos Advogados de São Paulo; d. Anita Carrijo, em seu nome e no da Associação Universitaria Feminina de São Paulo; e o vereador Cid Franco, em seu nome e do do Partido Socialista Brasileiro. O deputado Salomão Jorge referiu-se à atuação de Monteiro Lobato como escritor e homem de bem, e o deputado Pedro Pomar relembrou as lutas do grande escritor na questão do petróleo.

HOMENAGEM DA BIBLIOTECA INFANTIL

Finalmente, em nome da Biblioteca Infantil e dos seus frequentadores, o menino René Serra pronunciou as seguintes palavras, que representam ainda a homenagem de sua geração:

"É este um dia vazio para nós, Monteiro Lobato. Um dia em que despertamos sabendo que você se foi, levando um pedacinho dos nossos corações, uma saudade de cada criança desta cidade, deste Estado, deste país. A mesma dor que sentimos, a sentem os jovens e os adultos que já foram crianças, que já foram seus leitores, seus discipulos.
"Monteiro Lobato, você é o vovozinho de todas as crianças do Brasil, o avô carinhoso e muito rico de todos nós, possuidor de um fabuloso tesouro. E, antes de nos deixar, cuidou de amparar-nos, de repartir seu tesouro entre todos os seus netinhos. Transformou-o em livrinhos, os mais belos, os mais proveitosos que já lemos. São lições para os seus meninos, são guias que nos indicarão a direção a seguir, nesta longa caminhada que iniciamos e que você já terminou.
"Obrigado, Monteiro Lobato. Você muito nos deu e nós, em troca, só podemos oferecer-lhe gratidão.
"Deus o receba. Se a carga não for pesada, leve consigo milhares de corações de crianças; e entre eles estão os nossos, dos frequentadores das Bibliotecas Infantis e dos socios do 'Gremio Juvenil Cultural Monteiro Lobato'. Leve-os: eles far-lhe-ão companhia, como você sempre nos fez..."

HOMENAGEM DE TAUBATÉ

Taubaté, terra natal de Monteiro Lobato, prestou expressiva homenagem à memoria de seu insigne filho. Em nome da cidade, uma comissão constituida dos srs. José Luís de Almeida Soares, prefeito municipal; professor Cesidio Ambrogio, do Colegio Estadual e Escola Normal Oficial; Ortiz Monteiro Pato, da Sociedade dos Amigos da Cidade de Taubaté, e Gentil de Camargo, da Sociedade Taubateana de Historia e Folclore, veio a esta capital, a fim de representá-la nas ultimas homenagens a Monteiro Lobato. Essa comissão trouxe a incumbencia de pleitear em nome da cidade, que o sepultamento se realizasse em Taubaté, o que entretanto não foi possivel. A morte de Monteiro Lobato foi recebida com grande consternação em Taubaté, sendo decretado luto oficial por três dias. Varias solenidades estão em preparo na cidade em homenagem ao ilustre morto. "Embora escrevesse em português, sua linguagem era universal"

EXPRESSIVA NOTA DO JORNAL ARGENTINO "EL MUNDO"

Em sua edição de ontem, o matutino "El Mundo", de Buenos Aires, juntamente com o noticiario da morte de Monteiro Lobato, publicou a seguinte nota:

"Há certamente, na America, muitos homens e mulheres que não sabem quem tenha sido José Bento Monteiro Lobato. Poucas, porem, muito poucas são as crianças que o desconhecem. Esta foi a qualidade maior do grande avô que acaba de partir: ser amigo das crianças americanas; um amigo sem fronteiras de idiomas nem distancias.
"Monteiro Lobato escreveu os mais belos e alados contos de fantasia que surgiram no Novo Mundo no ensanguentado periodo que medeia as duas guerras mundiais.
"Embora tenha escrito em português, sua linguagem era universal, e as crianças, que presenteou com narrativas cheias de luz e de céus, e a quem propiciou viagens fabulosas, compreenderam-no perfeitamente. E sentiram-se gratas ao seu grande avô.
"Pode dizer-se que nenhum homem, em nenhuma epoca, recebeu como ele tantas cartas infantis. Somente em 1940, quando, por defender a liberdade, o que é o mesmo que defender as crianças, foi condenado a um ano de prisão, mais de um milhão de cartas lhe foram enviadas pelos seus pequenos amigos de toda a America. Essa, mais do que nenhuma outra, foi a sua grande recompensa.
"Monteiro Lobato foi todavia algo mais, muito mais, do que apenas o grande escritor contemporaneo das crianças. Antes de escrever obras como 'As Reinações de Narizinho', comparavel às mais belas produções de Anderson e Grimm no campo da literatura infantil, o ilustre literato brasileiro escreveu, para os adultos de sua patria, livros que condensam toda epoca e todo o drama do seu país. Seu livro de contos, intitulado 'Urupês', que se acha traduzido na maioria dos idiomas cultos, figura entre as obras culminantes do conto. Como novelista vigoroso, deixou-nos paginas em que sobressaem a natureza e o homem do Brasil, os quais figuram nas 'Cidades Mortas', 'Jeca-Tatu', 'O Macaco que se Fez Homem', 'Petroleo' e 'Ferro'.
"Há pouco tempo, Monteiro Lobato esteve na Argentina. E aqui, numa roda de amigos, confessou: 'Escrevo para as crianças, porque, depois de amanhã, elas construirão o mundo com que hoje sonhamos'. Desejava ir ao Peru, para ler nas velhas catacumbas Incas e nas ruinas das suas cidades mortas a verdade da America primitiva, a fim de construir um livro, que dissesse a verdade. Logo porem começou a sentir-se debilitado e teve que regressar celere ao São Paulo de suas primeiras lutas, aquele mesmo que, com uma carta, o transformou em escritor."

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