A MURALHA DO OLHAR UMIDO

Publicado na Folha de S. Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1963.


LENITA MIRANDA DE FIGUEIREDO

Gozavamos o sol em toda a sua plenitude. O mar se atirava para a frente numa distancia impossivel. Brisa e tranquilidade. Apenas uma semana e já pareciamos ter saido de uma churrasqueira. Estavamos tostados. Carnes firmes e lustrosas. A agua salgada não se detinha em nós. Escorregava para o chão em respingos e lagrimas.

Não eramos alegres nem felizes. Apenas calmos, descansados. Esquecidos de que deixaramos uma cidade trepidante e injusta atrás de nós. E que em breve deveriamos voltar para ela.

Arrisquei uma olhada para Raul. De barriga para cima e braços abertos. Pareceu-me um Cristo crucificado na sua cruz imaginaria. Comunista salafrario! - pensei comigo mesma. E não me contive:

- Sonha agora, sonha, os seus ideais. Emerja o cerebro materialista dessa modorra quente. Sacuda os membros, agite o corpo desse torpor. Fuja do sol. Vamos, reaja contra a indolencia. Esquentando-se ao sol como um burguês qualquer. Por que não vomita agora suas teorias marxistas? É duro ser comunista de barriga cheia, não?

Raul sentou-se contrafeito. Apagou com as mãos as gotinhas de suor que lhe brilhavam no rosto. Olhou-me, apenas, sem raiva, sem interesse. Isso queria dizer: De que adianta falar com você? Quantas vezes terei que repetir que uma coisa nada tem que ver com outra? Que todos os meus anseios e meus ideais se voltam apenas para um unico sentido? No sentido de que todos os homens sejam bons e se ajudem uns aos outros? Então um comunista não pode tomar sol, não pode descansar?

- Não pode, não pode não! - teria eu dito se ele me houvesse perguntado. Mas ele não perguntou. Apenas me olhava com um ar de analise, de suspeita e aquela boca polpuda e os dentes brancos à mostra sempre nos seus sorrisos de escarnio.

- Que olhos translucidos, meu Deus! Grandes e umidos de tristeza. Afinal, poderíamos aproveitar aquela semana de ferias. Viver sete dias com intensidade e prazer! Poderiamos amar-nos pelo menos, já que nada havia para fazer. Sol, lua e mar como cumplices. Ali mesmo na areia ou então no mar. Deitados, deixar que a agua nos envolvesse, que nos limpasse as almas estereis e os corpos exauridos. Rolar pela areia, pela agua, pelas rochas. Entrelaçar nossos corpos cativos e nus, na vegetação selvagem. Falar de amor, trocar ternuras e caricias. Sonhar com a tepidez de nossos corpos jovens.

Não. Era impossivel. Raul era muito voltado para si mesmo. Estava descansando de suas lutas jornalisticas e de seus imensos relatorios financeiros para o partido. Esperava com certa ansiedade um convite para visitar a União Sovietica. Nem ele mesmo sabia o que iria fazer lá. O problema era o de ir embora para algum lugar. Todos estão sempre querendo ir embora. Por que?

Raul continuava olhando-me. Mas sei que não me via. Eu era apenas um ponto fixo onde rolavam suas idéias conturbadas. Acho mesmo que nem se dava conta de estar perto de uma mulher. De uma mulher de maiô estirada ao seu lado. Era como se eu fosse transparente. Quando ele olhava a paisagem, abstraia-me dela. Acho mesmo que eu não existia, ou melhor, ninguem existia para ele alem de seus ideais revolucionarios e da sua mania estranha de salvar o mundo.

Foi quando ocorreu-me a idéia de dizer coisas sem nexo como ele costumava fazer. Eu acabava, por fim, admirando aquelas coisas loucas que ele dizia. Seus olhos ficavam mais translucidos mais umidos. Eu começava a amar àqueles olhos que me viam. Principalmente quando me falava de sua pregação comunista nas galaxias, e me apontava as estrelas para onde tinham ido Lenin, Stalin, Tolstoi, Marx. E mais uma pequena e solitaria estrela de onde havia caido o pequeno principe.

- Você acha que o carneiro comeu a rosa? - perguntava-me de supetão.

- Não sei, não - respondia secamente. E era sincera. E não sabia mesmo. E depois que me importava se em alguma estrela do universo um carneiro comeu ou não uma rosa? O sol queimava. A manhã era linda. Amar era o que eu queria, sem nada de definitivo, de eterno, que já não creio nessas coisas. Mas, amar, simplesmente, amar com toda a intensidade de que se pode ser capaz numa semana de ferias.

Outras coisas perturbam seu pensamento. E logo voltava ele:

- Sabe, era eu o aviador que caiu no deserto.

- Que deserto? - perguntava distraida.

- Ora, o deserto africano, onde encontrei o pequeno principe.

Ah! sim - respondia depressa - o pequeno principe.

Mas ele não me via, não me amava, não pensava nas coisas em que eu pensava. Então tudo era inutil. Eu não podia atirar-me nos braços de um homem que nem sequer me via. Não tinha nenhum talento para essa especie de conquista. O verdadeiro prazer, pois, estava na descoberta que um poderia fazer do outro. Quando não mais eu me espelhasse naqueles olhos translucidos, porque os atravessaria com meu olhar e me reconfortaria na sua umidade triste. Quando ele olhasse para mim demoradamente e abstraisse tudo o mais ao nosso redor. E me tocasse a mão de leve e o queimasse o calor da minha. E depois, tão proximos os nossos corpos escaldantes de amor e de sol, a nos olhar fixamente, certos de que um iria possuir o outro, e nos olhariamos até o fim, sem a possibilidade de uma traição de olhos fechados.

Mas não dormir ainda e nem cerrar os olhos. Olhar, continuar olhando um para o outro. Que o amor não se acabara ainda. Aí, então, eu beijaria aqueles olhos translucidos e minha voz sairia apagada e rouca.

- Meu amor querido!

E ele não diria nada, talvez. Sim, porque ele é de não dizer nada, ou então diria uma coisa estapafurdia qualquer.

- Isto é o que eu chamo de amor livre. - Ou então: Será que o carneiro comeu a rosa? ou ainda: você é uma mulher que me dá saudade.

E ele brincaria com os meus cabelos que eu deixaria crescer para ele. Falariamos então, de amor, daquele amor que estavamos criando para nós, perfeito demais para uma semana.

Os dias se esgotaram. E apenas nos saturamos de sol. Todas as manhãs deitados como dois mortos na areia. Ele já não me falava mais do pequeno principe. Eu já não me importava mais com suas manias comunistas. Era o ultimo dia. E ao se despedir da paisagem continuava ainda a olhar através de minha transparencia carnal. E ainda mais se umedeciam seus olhos grandes e seu eterno rosto de menino grande tomava tons de ternura. Riso leve de eterna infancia. Mãos cheias de nada. Sonhos fartos, ideais impossiveis... Fora na concha de seus braços que eu quisera agasalhar-me e oferecer-me para o amor ainda. Mas ele não me vira e continuava não me vendo. Excluira-me de seu mundo de menino em ferias. E faltara-me coragem para penetrar nele, exigir meu lugar, como criança indefesa que eu tambem era. Logo agora que eu olhava o céu todas as noites à procura de uma estrela onde um carneiro estaria comendo uma rosa. Por que não lhe dissera, então? Por que não lhe dera a senha que me abriria as portas do seu mundo onde todos podem tornar-se crianças outra vez? Por que, meu Deus? Por que não lhe dissera todas aquelas coisas sem nexo que pretendera dizer-lhe?

Por que? Que gostava de presepios, de cachorros e que ainda gostava de soltar barcos de papel na enxurrada? Por que calara a respeito daqueles olhos translucidos e daquele peito que me poderia abrigar para o resto da vida? Por que? Por que não me arremetera àquele corpo e beijara suavemente os olhos umidos? Aqueles braços tostados, de musculos saltados, não haveriam então de abraçar o corpo pequeno que se entrelaçaria ao dele, mendigando proteção e ternura? Era o ultimo dia. Liquidamos nossas contas na pensão. Pensei em bater à porta de seu quarto para ajudá-lo a arrumar as malas.

Mas ele era tão independente, tão auto-suficiente. Não precisava de nada, de ninguem. Era uma criança que sabia dar-se aos outros e, só em dar, era que a vida lhe importava e tomava altos significados. Pensei em mim mesma. No que havia dado aos outros na vida. Tudo, é verdade. Mas havia exigido tudo, tambem. Por isso não tinha nada. E deixamos aquele lugar do mesmo jeito a que a ele haviamos chegado. Eu e ele, vindos de caminhos diferentes. Encontramo-nos a meio do corredor, segurando nossas bagagens. Dissemo-nos bom dia.

Vinte minutos depois, sem saber nada um do outro a não ser que ele era comunista e que eu não acreditava em nada, estavamos estendidos ao sol como dois mortos, como dois velhos amigos. Mas agora, era o fim.

- Vai para a estação? - perguntou ele.

- Sim - respondi - laconicamente. Sentia-me infeliz por deixar aquele lugar e por ter perdido, talvez, o maior e mais perfeito amor de minha vida. Senti uma vontade danada de chorar. E a todo o instante contraia o rosto para que as lagrimas não se precipitassem. Sabia que perderia tambem aquele olhar umido de tristeza e aquela melancolia, olhos translucidos que sabiam enxergar através de mim. Quem mais teria na vida aquele poder de me excluir de uma manhã de sol, da propria existencia? Quem?

- Vamos, então - disse ele. - Eu a levo. E fomos. Olhando tudo, dizendo adeus a tudo, mudos e tristes. A estaçãozinha era bem provinciana, mas já tinha feições de cidade grande. Gritos, alaridos, apregoações, apitos, cheiro de café. Rumores de outra vida que nos esperava alem de nossos sonhos. Por alguns instantes perdi-o de vista, enquanto comprava meu bilhete de volta. Reencontramo-nos na plataforma.

Meu trem partiria cinco minutos após o seu. - Café? - perguntou-me ele.

- Não, obrigada - respondi, sentindo-me desfalecer.

- Então, adeus. Até um dia. Apitos e gritos do chefe da estação. - Malditos - disse comigo mesma. Por que não se calam? Pelo menos por um instante. Este adeus é tão importante para mim. Mas eles não se calaram. E um apito mais estridente, o ultimo apito, fê-lo correr para o seu vagão. Eu estava só. Parada com a maleta verde aos meus pés, sem saber o que fazer ou falar, devia estar parecendo uma tonta. Era como eu me sentia. Uma mulher idiota que perdera tudo mais uma vez. Foi então que corri. E procurei divisar seu rosto pelas janelas embaçadas. Encontrei-o. Por sorte ele achara lugar no lado da plataforma onde eu me encontrava. - Raul! - chamei.

Ele inclinou o rosto. Segurei-lhe de leve as mãos apoiadas no peitoril da minuscula janela.

- Sabe - disse eu meio sem jeito. - Ando preocupada. E as palavras me fugiam e o trem partiria dentro de segundos. Eu tinha de falar. Continuei: olhe, será... será que o carneiro comeu a rosa? E houve uma transformação, um milagre, mesmo. E ele gritou:- Silvia!

Mas o verdadeiro milagre, mesmo, foram os seus olhos translucidos. Já não olhavam através de mim. Fixavam-se em mim em toda a sua umidade e brilho. Como uma grande lagrima triste, oscilando antes de se precipitar sobre mim. E aí o trem partiu. Foi saindo devagarinho como um trem de brinquedo, com um nostalgico grito desafinado. Era o apito de meu trem. Voltei-me depressa e corri. Quando dei conta de mim estava sentada junto da janela, com os olhos fixos na paisagem que eu não conseguia focalizar e que passava celere como nas fitas de cinema. Eu e ele, rumo às cidades trepidantes e injustas para as quais haveriamos sempre de voltar. Eu não sabia para onde ele voltava. Ele não sabia que eu regressava morta. Nada sabiamos de nós mesmos. A não ser que ele se chamava Raul e era comunista. Que meu nome era Silvia e que eu não acreditava em nada.

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