LENITA MIRANDA DE FIGUEIREDO
Gozavamos
o sol em toda a sua plenitude. O mar se atirava para a frente
numa distancia impossivel. Brisa e tranquilidade. Apenas uma semana
e já pareciamos ter saido de uma churrasqueira. Estavamos tostados.
Carnes firmes e lustrosas. A agua salgada não se detinha em nós.
Escorregava para o chão em respingos e lagrimas.
Não
eramos alegres nem felizes. Apenas calmos, descansados. Esquecidos
de que deixaramos uma cidade trepidante e injusta atrás de nós.
E que em breve deveriamos voltar para ela.
Arrisquei
uma olhada para Raul. De barriga para cima e braços abertos. Pareceu-me
um Cristo crucificado na sua cruz imaginaria. Comunista salafrario!
- pensei comigo mesma. E não me contive:
-
Sonha agora, sonha, os seus ideais. Emerja o cerebro materialista
dessa modorra quente. Sacuda os membros, agite o corpo desse torpor.
Fuja do sol. Vamos, reaja contra a indolencia. Esquentando-se
ao sol como um burguês qualquer. Por que não vomita agora suas
teorias marxistas? É duro ser comunista de barriga cheia, não?
Raul
sentou-se contrafeito. Apagou com as mãos as gotinhas de suor
que lhe brilhavam no rosto. Olhou-me, apenas, sem raiva, sem interesse.
Isso queria dizer: De que adianta falar com você? Quantas vezes
terei que repetir que uma coisa nada tem que ver com outra? Que
todos os meus anseios e meus ideais se voltam apenas para um unico
sentido? No sentido de que todos os homens sejam bons e se ajudem
uns aos outros? Então um comunista não pode tomar sol, não pode
descansar?
-
Não pode, não pode não! - teria eu dito se ele me houvesse perguntado.
Mas ele não perguntou. Apenas me olhava com um ar de analise,
de suspeita e aquela boca polpuda e os dentes brancos à mostra
sempre nos seus sorrisos de escarnio.
-
Que olhos translucidos, meu Deus! Grandes e umidos de tristeza.
Afinal, poderíamos aproveitar aquela semana de ferias. Viver sete
dias com intensidade e prazer! Poderiamos amar-nos pelo menos,
já que nada havia para fazer. Sol, lua e mar como cumplices. Ali
mesmo na areia ou então no mar. Deitados, deixar que a agua nos
envolvesse, que nos limpasse as almas estereis e os corpos exauridos.
Rolar pela areia, pela agua, pelas rochas. Entrelaçar nossos corpos
cativos e nus, na vegetação selvagem. Falar de amor, trocar ternuras
e caricias. Sonhar com a tepidez de nossos corpos jovens.
Não.
Era impossivel. Raul era muito voltado para si mesmo. Estava descansando
de suas lutas jornalisticas e de seus imensos relatorios financeiros
para o partido. Esperava com certa ansiedade um convite para visitar
a União Sovietica. Nem ele mesmo sabia o que iria fazer lá. O
problema era o de ir embora para algum lugar. Todos estão sempre
querendo ir embora. Por que?
Raul
continuava olhando-me. Mas sei que não me via. Eu era apenas um
ponto fixo onde rolavam suas idéias conturbadas. Acho mesmo que
nem se dava conta de estar perto de uma mulher. De uma mulher
de maiô estirada ao seu lado. Era como se eu fosse transparente.
Quando ele olhava a paisagem, abstraia-me dela. Acho mesmo que
eu não existia, ou melhor, ninguem existia para ele alem de seus
ideais revolucionarios e da sua mania estranha de salvar o mundo.
Foi
quando ocorreu-me a idéia de dizer coisas sem nexo como ele costumava
fazer. Eu acabava, por fim, admirando aquelas coisas loucas que
ele dizia. Seus olhos ficavam mais translucidos mais umidos. Eu
começava a amar àqueles olhos que me viam. Principalmente quando
me falava de sua pregação comunista nas galaxias, e me apontava
as estrelas para onde tinham ido Lenin, Stalin, Tolstoi, Marx.
E mais uma pequena e solitaria estrela de onde havia caido o pequeno
principe.
-
Você acha que o carneiro comeu a rosa? - perguntava-me de supetão.
-
Não sei, não - respondia secamente. E era sincera. E não sabia
mesmo. E depois que me importava se em alguma estrela do universo
um carneiro comeu ou não uma rosa? O sol queimava. A manhã era
linda. Amar era o que eu queria, sem nada de definitivo, de eterno,
que já não creio nessas coisas. Mas, amar, simplesmente, amar
com toda a intensidade de que se pode ser capaz numa semana de
ferias.
Outras
coisas perturbam seu pensamento. E logo voltava ele:
-
Sabe, era eu o aviador que caiu no deserto.
-
Que deserto? - perguntava distraida.
-
Ora, o deserto africano, onde encontrei o pequeno principe.
Ah!
sim - respondia depressa - o pequeno principe.
Mas
ele não me via, não me amava, não pensava nas coisas em que eu
pensava. Então tudo era inutil. Eu não podia atirar-me nos braços
de um homem que nem sequer me via. Não tinha nenhum talento para
essa especie de conquista. O verdadeiro prazer, pois, estava na
descoberta que um poderia fazer do outro. Quando não mais eu me
espelhasse naqueles olhos translucidos, porque os atravessaria
com meu olhar e me reconfortaria na sua umidade triste. Quando
ele olhasse para mim demoradamente e abstraisse tudo o mais ao
nosso redor. E me tocasse a mão de leve e o queimasse o calor
da minha. E depois, tão proximos os nossos corpos escaldantes
de amor e de sol, a nos olhar fixamente, certos de que um iria
possuir o outro, e nos olhariamos até o fim, sem a possibilidade
de uma traição de olhos fechados.
Mas
não dormir ainda e nem cerrar os olhos. Olhar, continuar olhando
um para o outro. Que o amor não se acabara ainda. Aí, então, eu
beijaria aqueles olhos translucidos e minha voz sairia apagada
e rouca.
-
Meu amor querido!
E
ele não diria nada, talvez. Sim, porque ele é de não dizer nada,
ou então diria uma coisa estapafurdia qualquer.
-
Isto é o que eu chamo de amor livre. - Ou então: Será que o carneiro
comeu a rosa? ou ainda: você é uma mulher que me dá saudade.
E
ele brincaria com os meus cabelos que eu deixaria crescer para
ele. Falariamos então, de amor, daquele amor que estavamos criando
para nós, perfeito demais para uma semana.
Os
dias se esgotaram. E apenas nos saturamos de sol. Todas as manhãs
deitados como dois mortos na areia. Ele já não me falava mais
do pequeno principe. Eu já não me importava mais com suas manias
comunistas. Era o ultimo dia. E ao se despedir da paisagem continuava
ainda a olhar através de minha transparencia carnal. E ainda mais
se umedeciam seus olhos grandes e seu eterno rosto de menino grande
tomava tons de ternura. Riso leve de eterna infancia. Mãos cheias
de nada. Sonhos fartos, ideais impossiveis... Fora na concha de
seus braços que eu quisera agasalhar-me e oferecer-me para o amor
ainda. Mas ele não me vira e continuava não me vendo. Excluira-me
de seu mundo de menino em ferias. E faltara-me coragem para penetrar
nele, exigir meu lugar, como criança indefesa que eu tambem era.
Logo agora que eu olhava o céu todas as noites à procura de uma
estrela onde um carneiro estaria comendo uma rosa. Por que não
lhe dissera, então? Por que não lhe dera a senha que me abriria
as portas do seu mundo onde todos podem tornar-se crianças outra
vez? Por que, meu Deus? Por que não lhe dissera todas aquelas
coisas sem nexo que pretendera dizer-lhe?
Por
que? Que gostava de presepios, de cachorros e que ainda gostava
de soltar barcos de papel na enxurrada? Por que calara a respeito
daqueles olhos translucidos e daquele peito que me poderia abrigar
para o resto da vida? Por que? Por que não me arremetera àquele
corpo e beijara suavemente os olhos umidos? Aqueles braços tostados,
de musculos saltados, não haveriam então de abraçar o corpo pequeno
que se entrelaçaria ao dele, mendigando proteção e ternura? Era
o ultimo dia. Liquidamos nossas contas na pensão. Pensei em bater
à porta de seu quarto para ajudá-lo a arrumar as malas.
Mas
ele era tão independente, tão auto-suficiente. Não precisava de
nada, de ninguem. Era uma criança que sabia dar-se aos outros
e, só em dar, era que a vida lhe importava e tomava altos significados.
Pensei em mim mesma. No que havia dado aos outros na vida. Tudo,
é verdade. Mas havia exigido tudo, tambem. Por isso não tinha
nada. E deixamos aquele lugar do mesmo jeito a que a ele haviamos
chegado. Eu e ele, vindos de caminhos diferentes. Encontramo-nos
a meio do corredor, segurando nossas bagagens. Dissemo-nos bom
dia.
Vinte
minutos depois, sem saber nada um do outro a não ser que ele era
comunista e que eu não acreditava em nada, estavamos estendidos
ao sol como dois mortos, como dois velhos amigos. Mas agora, era
o fim.
-
Vai para a estação? - perguntou ele.
-
Sim - respondi - laconicamente. Sentia-me infeliz por deixar aquele
lugar e por ter perdido, talvez, o maior e mais perfeito amor
de minha vida. Senti uma vontade danada de chorar. E a todo o
instante contraia o rosto para que as lagrimas não se precipitassem.
Sabia que perderia tambem aquele olhar umido de tristeza e aquela
melancolia, olhos translucidos que sabiam enxergar através de
mim. Quem mais teria na vida aquele poder de me excluir de uma
manhã de sol, da propria existencia? Quem?
-
Vamos, então - disse ele. - Eu a levo. E fomos. Olhando tudo,
dizendo adeus a tudo, mudos e tristes. A estaçãozinha era bem
provinciana, mas já tinha feições de cidade grande. Gritos, alaridos,
apregoações, apitos, cheiro de café. Rumores de outra vida que
nos esperava alem de nossos sonhos. Por alguns instantes perdi-o
de vista, enquanto comprava meu bilhete de volta. Reencontramo-nos
na plataforma.
Meu
trem partiria cinco minutos após o seu. - Café? - perguntou-me
ele.
-
Não, obrigada - respondi, sentindo-me desfalecer.
-
Então, adeus. Até um dia. Apitos e gritos do chefe da estação.
- Malditos - disse comigo mesma. Por que não se calam? Pelo menos
por um instante. Este adeus é tão importante para mim. Mas eles
não se calaram. E um apito mais estridente, o ultimo apito, fê-lo
correr para o seu vagão. Eu estava só. Parada com a maleta verde
aos meus pés, sem saber o que fazer ou falar, devia estar parecendo
uma tonta. Era como eu me sentia. Uma mulher idiota que perdera
tudo mais uma vez. Foi então que corri. E procurei divisar seu
rosto pelas janelas embaçadas. Encontrei-o. Por sorte ele achara
lugar no lado da plataforma onde eu me encontrava. -
Raul! - chamei.
Ele
inclinou o rosto. Segurei-lhe de leve as mãos apoiadas no peitoril
da minuscula janela.
-
Sabe - disse eu meio sem jeito. - Ando preocupada. E as palavras
me fugiam e o trem partiria dentro de segundos. Eu tinha de falar.
Continuei: olhe, será... será que o carneiro comeu a rosa? E houve
uma transformação, um milagre, mesmo. E ele gritou:-
Silvia!
Mas
o verdadeiro milagre, mesmo, foram os seus olhos translucidos.
Já não olhavam através de mim. Fixavam-se em mim em toda a sua
umidade e brilho. Como uma grande lagrima triste, oscilando antes
de se precipitar sobre mim. E aí o trem partiu. Foi saindo devagarinho
como um trem de brinquedo, com um nostalgico grito desafinado.
Era o apito de meu trem. Voltei-me depressa e corri. Quando dei
conta de mim estava sentada junto da janela, com os olhos fixos
na paisagem que eu não conseguia focalizar e que passava celere
como nas fitas de cinema. Eu e ele, rumo às cidades trepidantes
e injustas para as quais haveriamos sempre de voltar. Eu não sabia
para onde ele voltava. Ele não sabia que eu regressava morta.
Nada sabiamos de nós mesmos. A não ser que ele se chamava Raul
e era comunista. Que meu nome era Silvia e que eu não acreditava
em nada.