Já no seculo XVI causava surpreza aos italianos a grande
sympathia que os hespanhóes manifestavam pelos bufões.
Flogel, autor de uma "Historia do grotesco", é
de opinião que os hespanhóes sobrepujam aos demais
povos europeus em materia de "comico-grotesco". E Richter
observa que "os graves hespanhóes possuem, no seu theatro,
mais farsas do que nenhuma outra nação, e algumas
vezes dois comicos numa só peça."
Devido a essa inclinação pelo grotesco, e tambem por
causa do caracter sombrio dos reis da casa de Austria, os bufões
chegaram a adquirir na côrte hespanhola maior preponderancia
do que em nenhuma e foram mais numerosos do que nos outros paizes.
A eximia qualidade dos pintores que retrataram os bufões
de Carlos V é uma prova de alto apreço em que este
grande monarcha tinha aos seus "truões ou homens de
prazer", como então se lhes chamava.
Um anão com que o presenteou Segismundo da Polonia e do qual
se sabe que era muito, muito engenhoso e bem educado, é provavelmente
o que foi retratado por Ticiano. Do inimitavel pintor Antonio Moro
ha outros dois retratos de bufões, um dos quaes é
o de Pejeron, truão do conde de Benavente e grande favorito
da côrte.
Apezar de seu temperamento frio e secco, Felippe II gostava do grotesco.
Em sua viagem á Inglaterra, fez-se acompanhar de muitos anões,
e os retratos de alguns delles, pintados por Sanchez Coelho, se
conservaram ainda em fins do seculo XVII, nas escadarias que levavam
á galeria norte do Alcazar de Madrid. No inventario de Felippe
II faz-se menção de um grande numero de retratos de
bufões.
Por um documento que se conserva na Bibliotheca Real de Berlim,
fechado em 1611, se sabe que os grandes de Hespanha, solteiros,
especialmente os da provincia, em tempos de Felippe II, tinham constantemente
mesa aberta, para a qual convidavam os cortezões mais influentes.
Nessas festas se considerava de boa politica honrar aos bufões
reaes "porque são as trombetas e os olhos de tudo o
que ouvem e vêem."
Tambem se conservam retratos de Bonamis e do anão D. Antonio,
com o seu cão Bay.
Para se saber como eram tratados os bufões na côrte
hespanhola, (embora se lhes chamasse tambem "sevandijas")
basta ler uns documentos unicos existentes nos archivos de Mantua,
e que são as cartas escritas por um famoso bufão italiano,
chamado don Jeronymo Fonati, que em 1604 esteve em Valladolid, onde
foi recebido pelos Grandes e apresentado ao rei, ao qual lhe deu
um presente de grande valor. O italiano era jogador e, a julgar
pelo que escrevia ao duque Módena, foi muito bem succedido
em Hespanha: "Medi forças com os cavalheiros da minha
profissão, e a todos levei a palma da infamia. Receio, porém,
que me seja impossivel vencer os cavalheiros, porque em vez de dinheiro
me pagam com gravidade". Ao retirar-se de Hespanha, o embaixador
de Módena o recommendou ao duque, insinuando que elle lhe
poderia dar informações completas da côrte,
onde em breve espaço de tempo experimentou toda a especie
de fortunas favoraveis ou adversas.
Felippe IV era uma dessas personagens de quem Erasmo diz, no seu
"Elogio da loucura", que "sem os seus bufões
não podem nem viver nem comer, nem passar uma hora sósinhos".
Não se apartava dos seus bufões e com elles ia aos
theatros ás festas, ás audiencias publicas. Elles
tinham entrada livre em toda a parte. Na tourada em honra do duque
de Módena os bufões estavam sentados junto aos dois
soberanos ao pé do throno, com o traje dos antigos reis de
Castella.
Manuel Gomes, um simples auxiliar de quarto, era uma das personalidades
de maior influencia na côrte de Felippe IV. Estivera na Italia,
e os diplomatas o consideravam um politico de grande perspicacia,
ainda que apparentemente sua "especialidade" consistisse
em divertir o rei, imitando com incrivel audacia a voz e os gestos
das mais altas personalidades, inclusive os reis. Com as suas palhaçadas
alliviava a melancolia do monarcha. Era tão grande a sua
ousadia que se atreveu a imitar o Numcio, quando este se achava
em funcção religiosa na capella real. Contava a Felippe
IV os feitos e os dictos da capital e a chismographia da côrte.
Os nobres necessitavam de favores em palacio, e os embaixadores
o convidavam para as suas mesas, pois que conheciam a sua influencia.
Nesse tempo, o mais afamado bufão da côrte era Cristobal
de Pernia, que sabia fazer-se pagar pelos cortezãos. Mas,
por ser muito esbanjador, vivia cheio de dividas. Apezar de toda
a sua influencia, foi uma vez desterrado para Sevilha, por ter incorrido
no desagrado do omnipotente conde-duque de Olivares. Parece que,
estando o rei em Balsain, pediu azeitonas e lhe responderam que
não havia. Ao ouvir isso, Pernia exclamou: "Ni olivas,
ni olivares". Tão innocente phrase teve, entretanto,
a virtude de irritar ao conde-duque, o qual decretou o desterro
do bufão.
Os bufões da côrte tratavam muitas vezes de imitar,
não só a personagens vivos, como tambem personagens
historicos. Pernia gostava de vestir-se com um traje phantastico
de turco e personificar o famoso corsario argeliano Barbarroxa,
e a isso, se devia, sem duvida, o facto de ter merecido o apellido
de "Barbarroxa".
Numa tourada celebrada em 1633, Pernia decidiu saltar ao picadeiro
e depois de cumprimentar o rei com um gesto, se dispoz a receber
um touro. Este approximou-se de Pernia e tratou-o como se fosse
um boneco, até que, enfurecido, o fez saltar do cavallo,
liquidando-o em tres tempos.
Outro bufão pintado por Velazques é o chamado "D.
Juan de Austria" cujo verdadeiro nome se ignora. A circumstancia
de atrever-se um bufão a usar o nome do heróe de Lepanto
o tio-avô do rei, demonstra até que ponto a grande
tolerancia para com os truões.
Com os bufões alternavam os anões. Estes tambem gostavam
de imitar no traje e nos ademanes, para os ridicularisar, a personagens
conhecidos. Por exemplo: D. Antonio o inglez, que retratado em um
grande cão apparece remediando a algum grande senhor flamengo,
conhecido na côrte.
Houve tambem mulheres na côrte hespanhola, que desempenharam
o triste papel reservado aos bufões. Nas chronicas contemporaneas
se fala muitas vezes em Magdalena Ruiz, addida ao serviço
da princeza dona Joanna de Portugal e depois da Infanta Izabel.
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