Lendas explicam origem do mundo
MÔNICA RODRIGUES COSTA
Editora da Folhinha
A água, para os cristãos, é
um símbolo de renascimento
e purificação. Quando as pessoas são batizadas, recebem
gotas de água ou mergulham
a cabeça numa pia, para simbolizar que ficaram limpas de
pecado e que renasceram.
A água simboliza coisas diferentes em outras culturas.
Toda cultura -tradições de
um grupo de pessoas- tem
sua cosmogonia, isto é, uma
explicação para como o Universo começou.
Os índios brasileiros têm
lendas que explicam como os
seres humanos apareceram
na Terra ou como surgiram o
guaraná ou a mandioca.
Os índios maués, do norte
do Brasil, têm um mito que
explica como surgiu a água.
Esse mito foi recolhido pelo
antropólogo Nunes Pereira.
Por que os rios são tortos
O pai desconfiou que Sucuri-Pacu estava enfeitiçado e
mandou o filho procurar remédio. O menino voltou à casa
dos tios, que lhe deram um remédio falso. A barriga dele inchou tanto, que nem adiantava
passar maracá (chocalho mágico) para curar. Mas, quando
o tio passou mais uma vez o
maracá, a barriga estourou, e
escorreu muita água.
Os tios chamaram os animais
para ver. O sapo, quando viu a
água, disse que agora podia tomar banho e saiu saltando, aos
gritos. A garça e o maguari
voaram e ficaram sobre os
paus, espiando. O morcego e a
andorinha só roçaram na água.
Os tios pediram ao pai de Sucuri-Pacu para abrir caminhos
na água. Mas ele não podia
olhar para trás, para não fazer
caminhos tortos. Sucuri-Ténon desobedeceu, olhando para trás e para os lados. É por
isso que os rios são tortos e a
mata é cheia de igapós (trechos
da floresta que ficam cheios de
água depois das enchentes dos
rios).
A primeira água
Antes de existirem índios maués,
havia o índio Sucuri-Ténon,
que tinha um filho esperto:
Sucuri-Pacu. O pai o proibiu
de visitar os tios feiticeiros, os
peixes Jeju e Traíra. O menino desobedeceu e foi à casa
dos tios, pois ouviu a conversa de que Jeju tinha inventado
a primeira água.
A tia mostrou ao menino
uma pequena poça, que parecia um pedaço de espelho
vindo do céu, em que sempre
caíam gotas de água.
O menino achou aquilo
muito pequeno. A tia não
gostou. Fez um feitiço, e Sucuri-Pacu ficou tonto, com o
estômago pesado e falta de ar.
Xixi do Inca virou o rio-mar
LUCIA SZMRECSÁNYI
especial para a Folhinha
Patxakamayte tinha uma filha que era casada com o Inca. Um dia, o Inca e a mulher
tiveram uma briga feia. Ela
disse a ele que não queria
continuar casada, que ia embora.
Patxakamayte morava muito longe deles, mas tinha o
poder de ver o que acontecia.
Quando viu os dois brigando, fez a Terra tremer, chamando a filha para ir à casa
dele. Ela foi. Quando chegou
lá, o pai deu muitos conselhos e pediu para a filha fazer
as pazes com o marido.
Então ela resolveu voltar
para casa. No meio do caminho, encontrou o Inca, que
também estava indo embora.
Ela pediu para o marido
voltar para casa junto com
ela, mas ele não quis.
Os dois se separaram, e o
Inca continuou seu caminho.
Ele foi andando, andando,
até que encontrou um lago de
água preta e escutou um galo
cantando.
Galinha e galo
O Inca pegou um anzol, botou um grão de milho como
isca e jogou no lago.
Quando puxou, tinha pescado uma galinha. Botou outro grão de milho no anzol e
jogou no lago. Pescou um galo.
Cachorros
Então o Inca começou a escutar um latido. Pegou um
pedaço de carne, botou no
anzol e jogou na água. Quando puxou a linha, tinha pescado um cachorro. Fez de novo a mesma coisa, e pescou
uma cadela.
Patos
Ele ouviu um grito de pato.
Colocou mais milho no anzol
e pescou um pato e uma pata.
Menina e menino
O Inca continuou a viagem.
Andou mais um pedaço, até
encontrar outro lago. Dessa
vez, ele escutou uma risada.
Resolveu botar banana no
anzol e pescou uma menina,
depois um menino. Mas essa
menina e esse menino eram
peruanos.
Muitos peruanos
E os peruanos começaram a
sair do lago sozinhos, sem isca nenhuma. Saiu um, depois
saiu outro e mais outro e mais
outro... Eles eram muitos e
não paravam de sair de dentro do lago.
Garças
O Inca ficou assustado,
achou que aquilo não era
bom. Então transformou os
primeiros peruanos que saíram em garças.
Pedras
Mas apareceram outros. O
Inca transformou esses em
pedras. Mas apareceram outros. O Inca amarrou esses
outros e bateu neles. E vieram
mais outros. O Inca pegou
um facão e começou a cortar
todos os que iam saindo do
lago.
Mas os peruanos não acabavam nunca: cada vez saíam
mais de dentro do lago. O Inca cansou e desistiu de acabar
com eles. Foi embora, e os peruanos foram atrás dele.
Viagem pelo rio grande
Lá da terra dele, Patxakamayte estava vendo tudo o
que estava acontecendo.
Ele sabia que o Inca estava
indo para sua casa e não queria que os peruanos fossem
juntos. Mandou um de seus
netos levar os peruanos embora, viajando com eles por
um rio grande, em direção à
foz, para longe das nascentes.
Mais tarde, o Inca chegou à
casa de Patxakamayte, sentou no terreiro e começou a
beber caissuma (uma bebida
de mandioca que os donos da
casa oferecem às visitas).
Quando o Inca quis levantar para fazer xixi, não conseguiu: estava grudado no chão.
Então teve de continuar
sentado, bebendo a caissuma
que as mulheres traziam e segurando a vontade de fazer
xixi.
Até que uma hora ele não
agüentou mais e fez xixi ali
mesmo, sentado.
Mas então fez tanto xixi que
a Terra começou a se alagar.
Quando viu aquilo, Patxakamayte fez a sua casa ficar bem
alta e deixou o xixi do Inca
continuar a alagar a Terra.
Depois, esse xixi virou o
rio-mar, onde deságuam todos os rios, que fica onde o
mundo termina e o céu começa.
Lucia Szmrecsányi é antropóloga e trabalhou com os índios Ashaninka de 1995 a 1996.
Essa lenda foi recolhida e adaptada por ela.
Para entender a história
especial para a Folhinha
Antes da chegada dos brancos, os índios Ashaninka
ocupavam uma região onde a
floresta Amazônica fica perto
das montanhas dos Andes.
Eles lutaram muitas vezes
contra os incas, que queriam
estender seu império até a
floresta, e conseguiram manter sua independência. Mais
tarde, eles lutaram também
contra os brancos, que quiseram fazer missões católicas
em seu território, há mais ou
menos 350 anos.
Patxakamayte é o nome de
um personagem da mitologia
ashaninka, considerado um
dos primeiros ancestrais do
povo. Os Ashaninka dizem
que ele viveu na Terra quando
o mundo era bem diferente.
Ele tinha muitos poderes.
Criou muitas coisas que existem no Universo. Hoje em
dia, ele vive no céu. Os Ashaninka dizem que ele é o mesmo Deus de que falam os
brancos cristãos.
O Inca é outro personagem
que aparece nos mitos ashaninka. Ele tem qualidades parecidas com as que os Ashaninka viam no povo inca, que
foi seu inimigo. É interessante que, nessa história, os
brancos -"peruanos"- e
seus animais domésticos são
associados a esse povo inimigo.
(LS)
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