A vida sobre rodas
HELOISA PRIETO
PAULO MORELLI
especial para a Folhinha
Do alto de minha janela
posso ver um quintal e uma
garagem. Uma bagunça daquelas. É divertido. Tão diferente do meu mundo.
Aqui em casa é tudo organizado. Mamãe acha que assim
posso me locomover com
mais liberdade. É que não
posso andar.
O acidente
Quando eu tinha 4 anos mamãe e eu estávamos indo de
carro para a praia. Eu estava
no banco de trás. Fazia muito
calor. Até hoje não consigo
me lembrar do acidente.
Pápi me disse que um caminhão atravessou a pista e
atingiu nosso carro.
Fiquei dias no hospital.
Quando acordei, não conseguia mais andar.
Basquete sobre rodas
Eu falo inglês muito bem.
Um ano depois do acidente,
meus pais me levaram para
uma escola especial nos Estados Unidos.
Eu aprendi a nadar e a jogar
basquete -sou super-rápido
no arremesso.
Mamãe me disse que, quando eu fizer 18 anos, vou ganhar um carro com direção
especial. Vou aprender a dirigir bem rápido. Afinal, passo
a vida sobre rodas.
A casa da garagem
Pedi a Ana, nossa empregada, que me levasse até a casa
da garagem. Eu morria de curiosidade. Mas conheci Dedé
brincando no computador.
Um dia, eu estava conectando com um montão de
gente, numa dessas salas de
conversas malucas da rede.
Apareceu um cara com o
apelido de Zorro. Pensei:
``Zorro é tão velho, parece
coisa do pessoal da casa da
garagem''. E era mesmo.
Ficamos amigos através do
computador. Zorro me contou que sua mãe tinha morrido e que ele vivia com o pai,
biólogo, e com a tia, uma tatuadora.
Como será essa tia? Será que
tem o corpo tatuado feito
guerreiro japonês, ou parece
uma roqueira heavy metal?
Amizade
Só soube que Dedé era meu
vizinho num dia que estava
chateado. Eu tinha sido atropelado por umas crianças que
corriam pelo corredor do
shopping. No lugar de me
ajudar a levantar da cadeira,
elas fugiram rindo.
Quando cheguei em casa,
conectei. Zorro também estava chateado. Era aniversário
da morte de sua mãe. Ela era
linda e ele a adorava. Achei
que meus problemas eram
bobagem.
Bom, eu o convidei para
brincar aqui. Ele agradeceu,
disse que seu nome verdadeira era Dedé e me deu seu endereço. Você já deve ter adivinhado. Dedé é meu vizinho.
No dia seguinte, pedi a Ana
que me levasse até a casa. Assim que toquei a campainha
me lembrei de que não tinha
contado à ele que eu não andava. Fiquei com medo que
ele se assustasse.
Mas Dedé é um total ET.
Abriu o portão. Camiseta furada, bermuda detonada e
uma canela cheia de esparadrapos. Era mais legal do que
eu pensava.
Tia tatuadora
- Entre aí -ele disse.
A garagem era demais!
Gaiola com hamster, gibis velhos, vidrinhos espalhados.
Era tanta coisa para olhar que
nem percebi que alguém tinha entrado.
- Meu, você é lindo!
Era tia Lola, a tatuadora.
Cabelos louros, longos, braços inteirinhos cobertos de
tatuagens, muito colar e muita pulseira. Eu sorri. Começou a chegar mais gente. Eu
me sentia ultrabem.
Denise, minha psicóloga,
teve de insistir com mamãe
para deixar eu descer todos os
dias para ver a turma. Mas,
quando ela conheceu Dedé,
quase mudou de idéia.
Quando o pai de Dedé nos
convidou para ir à praia, mamãe demorou, mas terminou
deixando. Denise lhe explicou que ela precisava parar de
ser superprotetora comigo.
Resultado: fui para Ubatuba.
Na praia
Eu ficava a maior parte do
tempo nadando com o Dedé,
na piscina do condomínio.
Até que seu Guilherme, o
pai dele, nos convidou para
comer num restaurante.
Eu já tinha comido montanhas de camarão quando um
garotinho começou a passar
mal. Ele se debatia e eu percebi num minuto: era epilepsia.
Solidariedade
No hospital, eu tinha visto
crianças assim. Fiquei com
medo que ele caísse no chão.
Como sou rápido com minha cadeira, puxei o menino
e fiquei com ele no colo, dando apoio para a cabeça.
Nisso, quando a mãe do garoto (que tinha ido ao banheiro) veio apanhá-lo, um
cara se levantou e gritou:
- Levem esse menino, ele
está possuído pelo demônio!
A mãe começou a chorar, e
o dono do restaurante deu
um murro na cara do sujeito.
Quando eu o devolvi para a
mãe, ele estava dormindo. Na
manhã seguinte, ela quis me
agradecer. Fiquei sem jeito.
Voltei para São Paulo, e só
faltaram me carregar no colo.
O centauro
Mas o melhor foi Tia Lola.
Ela disse assim:
- Você sabe o que é um
centauro? - e, antes que eu
respondesse, ela continuou
- são criaturas da mitologia
grega, metade homem, metade cavalo. Protegiam o deus
da alegria, Dionísio. Eu quero
lhe dar um presente, posso?
- Uma tatuagem?
Ela fez que sim com a cabeça. Eu concordei. Sabia que
mamãe não ia implicar. Enquanto ela desenhava no meu
braço direito, me contava:
- Nos Mares do Sul, os nativos tatuavam os garotos para protegê-los de maus espíritos e para marcar a passagem
para a vida adulta...
Quando ela terminou, o desenho estava fraquinho. Custou uns dias para pegar a cor.
Mas percebi qual era a figura.
Um centauro. O símbolo da
força, velocidade e coragem.
Esse conto é um episódio do filme ``A Turma da
Garagem'', com roteiro de Heloisa Prieto e Paulo Morelli, sem lançamento previsto.
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