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Ivan Lessa   Londres
Mario Sergio   22/04/2001
Dia 25 de outubro de 1946


Mario Sergio,

venha comigo até o dia 25 de outubro de 1946, por alguns minutos. Por 10 minutos, para ser preciso. Aqui mesmo, não muito longe de Londres. Até Cambridge e o Clube de Ciências Morais. Talvez o mais famoso fórum filosófico do mundo. Nele, até hoje, de forma por vezes ríspida, filósofos discordam uns dos outros. Já foi pior. Nessa época em que o convidei a visitar, por exemplo. Culpa de quem? De Wittgenstein. Em meio a seus muitos embates -- com a famíla, com suas percepções, com seu corpo --, Wittgenstein ensinou a toda uma geração que a intolerância, os maus modos e a fúria eram dever do gênio. Prova cabal de que a busca pela verdade exige tamanha precisão e tais nuanças que o menor desvio no roteiro, e as normas dele exigidas, provoca o que chega a constituir agonia física.

São conseqüências, talvez, de quem tem ouvido absoluto para a filosofia, como certas pessoas têm para a música. (Nat Cole tinha, João Gilberto tem.) Tendo este ouvido absoluto, Wittgenstein não suportava os sons -- chamemo-los filosóficos -- que as outras pessoas fazem.

Wittgenstein não era o único filósofo a confundir pureza com arrogância. Karl Popper, seu compatriota vienense, também demonstrava uma gloriosa intolerância para com qualquer tipo de crítica. O que não deixa de ser engraçado e irônico, visto que Popper sempre pregou (uso o verbo com a devida prudência) liberalismo e franqueza. Na verdade, muitos, no metiê, diziam, pelas costas de Popper, que sua obra mais famosa, até então, "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos", deveria, na verdade, intitular-se "A Sociedade Aberta Por Um de Seus Inimigos". Popper era parada dura para Wittgenstein, em matéria de escrotidão, na hora do debate e da discussão filosófica. Transformavam-se os dois -- passando para um paralelo futebolístico -- em béquis da várzea: Joaquinzão um, Sete Dedos o outro.

Voltando à música, a tragédia de Popper era -- lembre-se, estamos em 1946 -- que pouquíssimos filósofos achavam que, intelectualmente, ele tivesse o tal do ouvido absoluto. Ao passo que Wittgenstein era capaz, não só de ouvir a mão única a bater palmas na floresta, como ainda de dizer como e em que compasso a charada linguística desafinava.

O que acontece, então, quando esses dois gigantes se encontram? Chegamos ao dia 25 de outubro de 1946. Dia chuvoso, mês nublado. Popper deu uma chegadinha à Cambridge do pós-guerra disposto a um confronto com Wittgenstein. Popper vai ler um ensaio onde o tema é o seguinte: há mesmo problemas filosóficos ou é tudo apenas quebra-cabeças lingüísticos? Quer dizer, foi na alma do negócio de Wittgenstein. Tanto na primeira quanto na segunda fase de sua filosofia, já que ambas propõe que a compreensão correta da língua pode nos liberar das fantasias e encantamentos da filosofia. Para Wittgenstein (todo mundo sabe agora), os problemas filosóficos só existem quando a língua deu às de vila-diogo, se me permite um arcaísmo para melhor ilustrar a chula síntese. Para Popper, há problemas genuínos de metafísica, de teoria política, de conhecimento, de metodologia cientítica.

Bertrand Russell compareceu à reunião. Tanto ele quanto Popper achavam -- algo errôneos, no meu ínfimo entender -- que Wittgenstein e seus seguidores (ninguém os chamava de "patota") trivializavam o assunto, substituindo joguinhos de salão linguísticos por uma verdadeira concentração intelectual nas verdadeiras questões.

Apesar de só pessoas de renome e reputação impecável estarem presentes ao evento, há sérias divergências a respeito do que se passou a seguir. O contorno geral é claro, os detalhes embaçados. Popper começou a enumerar um rol de questões filosóficas sérias e sólidas. Wittgenstein, como sempre, mostrava-se agitado e interrompeu-o mais de uma vez. A uma certa altura, ele se voltou para a lareira acesa, tomou na mão um atiçador com ele ferindo repetidamente o ar, como se pontuando e acentuando seus argumentos. Alguém, não se sabe quem -- desconfia-se que tenha sido Russell --, insistiu para que Wittgenstein deixasse o atiçador de lado. A seguir, duas coisas ocorreram: outro alguém pediu a Popper que desse um exemplo de princípio moral. Ao que Popper respondeu:

- Não ameaçar as visitas com atiçadores.

Wittgenstein deixou o recinto. Segundo Popper, quem pedira o exemplo de princípio moral fora o próprio Wittgenstein. Outros acusam Popper de mentir. Outros ainda dizem que Wittgenstein se mandou porque Bertrand Russell acabara de lhe chamar a atenção. Mais tarde, uma pessoa não identificada teria pedido o tal exemplo de princípio moral, recebendo, aí então, a resposta. Em suma, não há uma versão definitiva. O que não deixa de ter seu charme filosófico. De qualquer forma, frise-se que o ambiente, no Clube das Ciências Morais, sempre esteve, e está, coberto da fumaça, mal dando para se ver o que está ou não acontecendo.

Eis aí então, caríssimo, nestas linhas acima, uma grosseira tentativa minha de sintetizar o livrinho que, deliciado, comecei e acabei nesta semana mesmo. Trata-se de "Wittgenstein´s Poker" (é o atiçador, mas também pode entender como o carteado), leva o subtítulo de "A História de uma Discussão de 10 Minutos Entre 2 Grandes Filósofos", foi escrito por David Edmonds e John Eidinow, publicado pela Faber, tem 284 páginas e custa apenas 9 libras e 99 pence. Vale a pena. Principalmente agora que você está editando um tradicional jornal carioca.

Um grande abraço.


--------------- Mensagem Original ---------------

De: Mario Sergio
Para: Ivan Lessa
Data: Terça-feira, 19 de Abril de 2001
Assunto: Antes que Anoiteça