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Mario Sergio   São Paulo
Ivan Lessa   19/12/2000
Homenagem submarina


Homem submarino,

Em sua homenagem, agora há pouco atravessei a piscina debaixo d´água. Os movimentos lentos. A horizontalidade. A água azul-claro. Os ladrilhos. As bolhas subindo. O cheiro do cloro. O barulho quase nenhum. A ausência de gravidade.

Quando nadava debaixo d´água no Botafogo, ou no Copa, ou no Guanabara, e acho que até hoje na sua piscina olímpica em Cascais, você não usava óculos. Óculos de natação, bem entendido. Via vultos. Via tudo embaçado. Os olhos ardiam. Você era um cego submarino.

Pois saiba que nadar debaixo d´água sem óculos equivale à cegueira ao andar na terra. Não a escuridão total, por certo. Mas é impossível perceber as formas, as distâncias, as cores. Com óculos, abre-se um mundo novo. As sensações submarinas, aliadas à visão, altaram a percepção ao em redor. A visão potencializa os outros sentidos, dá sentido a eles.

O óculos de natação é puramente utilitário: serve para evitar ardência, irritação e eventuais doenças nos olhos. Serve também para perceber melhor o estilo, as braçadas e fazer a volta no fim da piscina com maior precisão. Só quem nada a sério, quem treina algumas vezes por semana, usa óculos. Quem apenas brinca na piscina a rigor não precisa deles. Mesmo assim, aconselho você usar da próxima vez. Garanto que vai gostar. Não esqueça de dar uma cuspida nas lentes: faz com que elas continuem translúcidas.

Eu gostei. Lá pelas tantas, há alguns anos, fiz um curso e aprendi a fazer mergulho submarino. (Manja Lloyd Bridges-Mike Nelson? Pois é: mais ou menos aquilo). Em mergulho, não se bota óculos. Se usa máscara. Aí, cara, o barato é total. Imagine-se meia hora debaixo d´água. No mar. Num mar claro. Com peixes. Com rochas. Com plantas. Você sem ter que voltar à tona para pegar ar. Baixando a vinte, trinta metros de profundidade.

Lá embaixo, as nossas noções mais básicas, as de tempo e espaço, são dissolvidas. O espaço é infinito, e você está no meio dele – nem no solo, nem voando, nem flutuando: em suspenso, com a antiforça da gravidade o puxando para cima. O tempo passa com lentidão, com o vagar dos movimentos submarinos.

Eu estive lá, Lessa, e vi. Vi uma raia dançar como bailarina em Bora Bora. Vi um navio naufragado na Lage de Santos. Vi tartarugas no Atol de Abrolhos. Vi um cânion submerso na Grande Barreira de Coral. Vi tubarões em Fernando de Noronha. Vi a água azul contra um céu azul. Vi a água verde contra um chão de pedra. Vi bolhas subindo vagarosamente. Via algas e plantas medrando na areia. Vi garras arruinadas arranhando o fundo de mares silenciosos. Vi cavernas. Vi condutos, túneis e passagens secretas de pedra calcárea e descobri na prática que o poeta estava certo:
When I try to imagine a faultless love
Or the life to come,
What I hear is the murmur of underground streams,
What I see is a limestone landscape.
Se alguma moça vier com o papo de que mergulho submarino é comunhão com a natureza, pode estar certo que daqui a pouco ela estará perguntando o seu signo. Não há nada disso. Assim como natação, mergulho submarino é cultura. Não tem nada a ver com a natureza. Ou você acha que o corpo humano foi feito para nadar? Nadar e mergulhar são técnicas, são produtos da cultura. Elas tiram o ser humano do seu ambiente natural, a terra, e o colocam num meio estranho e hostil em si mesmo. A tendência do ser humano é se afogar.

Mergulhar é ainda mais perigoso que nadar. Há toda uma série de procedimentos para evitar desastres submarinos. Há um, contudo, que é de difícl controle: a euforia. Quanto maior a profundidade, maior a pressão, menos tempo se pode ficar na água. A oxigenação diferente do cérebro aumento, combinada com a pressão, altera a percepção, provoca uma intensa euforia. O mergulhador fica tão eufórico que às vezes joga o equipamento fora. E morre. Alguns especialistas defendem que a maior parte dos acidentes submarinos é provocada pela euforia. Mesmo depois, já no barco ou em terra firme, a euforia continua. Depois, vem o sono, pesadão. Sensações modificadas: é melhor falar com o Mike Nelson do que com o Nelson.

Seu,

Namor da Conceição

--------------- Mensagem Original ---------------

De: Mario Sergio
Para: Ivan Lessa
Data: Domingo, 17 de Dezembro de 2000
Assunto: Na piscina com Apolo