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Ivan Lessa   Londres
Mario Sergio   17/12/2000
Na piscina com Apolo


Namor da Conceição,

você me deu tantos dados a respeito de seu enfrentamento da perigosa lagoa onde barrigas-verdes, secularmente, afogam seus inimigos, com truques como supostas "competições esportivas", que eu, aqui, tive até vontade de voltar a meus tempos de natação. Em piscina, evidentemente. Já que fui garoto de praia de Copacabana, quando os esgotos eram os mesmos mas havia menos gente para reclamar.

Na praia, furávamos onda. O verbo "furar" sempre nos pareceu meio sobre o ridículo. Algo que as banhistas dos anos 20, gordotas e vestidas até os tornozelos, faziam na água rasinha, de touca listrada com fita e um sorriso pintado no rosto. Enfrentávamos, então, ondas. Descíamos no peito. Literalmente. Quer dizer, pegávamos jacaré. Prancha só uma ou outra. Sempre coisa de mariquinhas.

Mas paro de rememorar aqui mesmo. Cada um tem sua lagoa a atravessar, sua onda a furar ou nela pegar jacaré. Eu falava em piscina. Sim. Mesmo com aquele marzão todo se abrindo para mim, eu gostava de ir à piscina. A do Copacabana Palace, a do Botafogo, pouco antes de se chegar ao Mourisco (sabe o que é?), ou a do Guanabara. A do Palace, eu tinha de ir de mãe, que ficava na pérgula. Não era, pois, muito divertido. Piscina tem que ser sem mãe. Pai, talvez. Mãe, nunca.

A do Botafogo, eu era sócio. Para ver o time perder da social, em General Severiano (São Cristóvão 4 a 0, no primeiro jogo do campeonato de 1948, mas o Glorioso acabou campeão, com 4 pontos perdidos apenas), sendo a piscina um mero ornamento, uma finta desnecessária do Geninho, digamos. Além do mais, não era muito grande, não tinha trampolim alto.

Boa era a do Guanabara. 50 metros, trampolim de 10 (ou seriam 15?). Nem eu nem o Apolo éramos sócios. A gente ia, aos sábados, à piscina do Botafogo, depois penetrávamos no Guanabara, para pular do trampolim e ficar debaixo d´água.

"Que Apolo?", já o ouço perguntar. O Apolo era meu melhor amigo na época. Pobre e meio burro, custava-me, como a maior parte dos amigos, uma fortuna. Eu tinha de pagar o cinema, o passe do jogador de botão (botão-jogador, melhor dizendo), o picolé da rua da Passagem, quando matávamos aula. "Cabular aula" ou "bater gazeta" era coisa feito as senhoritas dos anos 20 na praia: velhas, velhas, velhas.

O Apolo, com 14 anos, já tinha bigode. Isso era motivo de orgulho para nós dois. Eu tinha uma parceria estranha com o bigode do Apolo. Não ouse explicar. Deixe os meninos em paz. Uns garotos, mal sabíamos o que estávamos fazendo. (Cá entre nós, eu sempre soube o que estava fazendo. Muito cedo percebi como explorar minha tenra idade. Deve ser por isso que me sobrou tão pouca idade neste crepúsculo de vida.)

O pai do Apolo tinha um armarinho na Visconde de Pirajá. "A Nova Era". Eu achava isso bacanérrimo. Passávamos lá para roubar fita, elástico, botão, o que desse sopa. O roubo em conjunto é quase tão emocionante quanto saber a letra toda de um fox ou samba-canção. Roubamos na Sears, na confeitaria Copenhagen, ao lado do Cineac, nas lojas Americanas. Roubamos discos usados na "Feira dos Discos", na rua São José. Pegávamos uma pilha enorme, íamos para a cabine. Apolo de pasta. Nela tacávamos uns 10 ou 12 e se mandava na frente, correndo todos os riscos, enquanto eu, com minha melhor cara de anjo, ia e pagava por um ou dois na caixa. Lembro que comprei o "Ballerina", com o Buddy Clark, na "Feira do Disco". Face B era "Haunted Heart". Eu lembro dos que paguei e não dos que roubei. Ou melhor, Apolo roubou para mim. Apolo não tinha vitrola.

Fôssemos o filme de gangster que tanto amávamos, no Pirajá ou no Americano, e eu poderia chamar o Apolo de "Shorty", pedindo, com um gesto descuidado, que ele me acendesse o charuto ou cigarro.

A última vez que vi o Apolo, foi lá pelos anos 60. O mesmo bigodão, e ele carregando, na avenida Copacabana, uma televisão, juntamente com um -- novo -- amigo. Não estava roubando a televisão. Estavam, ele e o -- novo -- amigo botando a televisão num carro para ser entregue ao freguês. Fôra consertada e agora funcionava bem. Dei azar. No meu tempo, o rádio em que, aos domingos, ouvíamos "Piadas do Manduca" e "Nada Além de Dois Minutos" nunca dava problemas. Onde é que Apolo foi decobrir jeito para consertar qualquer coisa? Estará rico? Aprendeu finalmente a ficar debaixo d´água?

Eu ia esquecendo. Tudo isso era para dizer que, na piscina, eu achava uma besteira enorme ficar nadando pra lá e pra cá. A única coisa interessante era ficar debaixo d´água. O máximo do tempo possível. Sem competição nem nada. Só porque debaixo d´água é mais agradável do que em cima d´água. É mais quieto, é mais repousante. Por isso que não entendo essa agitação toda. A minha e a de todo mundo. Estivéssemos debaixo d´água e parávamos com essas besteiras.

Noël. Muito simples: estava num dia aziago, como dizia o comentarista esportivo quando o Oswaldo Baliza engolia um frango. Noël errou. A moça deixou a garçonniére, entrou num taxi, o taxi bateu, uma ambulância levou, ele deu com a luva, não teve peito de saber se ela morreu ou não. Noël erra furiosamente quando fala que a luva "é um documento…que lembra quem me esqueceu". O tema deveria ser covardia. Ponto. Ela não esqueceu coisa alguma. Foi atropelada. Ou o carro em que estava bateu. Uma coisa assim.

Estivessem todos debaixo d´água e nada disso teria acontecido.

Glub-glub para você também, de uma ilha onde São Pedro, mais do que zangado, fulo da vida, anda mandando brasa, digo, chuva.

Ivan

--------------- Mensagem Original ---------------

De: Mario Sergio
Para: Ivan Lessa
Data: Quinta-feira, 14 de Dezembro de 2000
Assunto: Caixão do Noëlão