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Ivan Lessa   Londres
Mario Sergio   14/09/2000
Budun, dendê e miséria


Sim, nêgo,

eu já fui à Bahia. Na ocasião, a primeira coisa que reparei, aliás, foi essa que tanto lhe chocou: ninguém dizendo "ó xente", "cabra da peste!" ou "cabeça chata". Isso tudo é mais pra cima: Ceará, Pernambuco, aqueles outros estados bambambãs. Nisso que dá você ser filho de telenovela da Globo, ter treinado seu ouvido onde todos os sotaques do norte ou nordeste são iguais, globais sotaques que provocam irritação e hilariedade entre os verdadeiros cabras da peste e cabeças chatas.

Se tivessem entrado de peixeira na estação da Globo quando do primeiro atentado contra a prosódia dos dialetos nacionais, não estaríamos agora em busca de nossa identidade, nosso décimo-terceiro, nosso merecido lugar, vestidos de dourado, no palco iluminado da única e verdadeira globalização. Se tivessem dado uns bons cortes naquele bando de vagabundos e desocupadas que deixaram o comércio e a -- para ser gentil -- cozinha e a costura pelo tele-estrelato, insistindo em se auto-intitularem "atores" e "atrizes", se tivessem, dizia eu, botado uns 20 ou 30 para sangrar, não estaria você aí agora confundindo açaí com abaixaqui.

Mas não quero engrossar. Sou doce e sereno. Um hedonista. Quase um baiano. De ouvido apurado, como eles todos. Se você quiser impressionar os amigos e arrumar namoradas, experimente, da próxima vez em que for imitar um baiano, sapecar um "não sabe?", um "num viu?" ou simplesmente "viu?" no fim do frase. Todos o aplaudirão e as mulheres vão querer dar imediatamente para você. Não se esqueça de arrebitar um tiquinho o rabito da sentença. Por que, afinal, você acha que tem tanto baiano jogando futebol de botão? É para empinar o traseiro, rapaz! Tentar botar idéia de jerico na cabeça dos companheiros! Como quase tudo que é baiano (leia essa frase duas vezes), o futebol de botão é apenas uma etapa na arte da sedução homossexual.

Mais: você é paulista. São Paulo é o único estado onde o linguajar contém pejorativos desairosos (uma redundância bem paulista) para com minorias étnicas. Italiano, por exemplo, é carcamano. Porque os italianos do empório na esquina roubavam, tacando a mãozona na balança na hora de pesar as compras para a pobre da Dona Maria. Há os turquinhos, na verdade sírios e libaneses. E baiano, que é qualquer nortista ou nordestino. São Paulo juntou tudo no mesmo saco e só não atirou do viaduto ou no Tietê por que, no fim das contas, alguém tinha de botar um tijolo em cima do outro, cobrir tudo de concreto e cair do andaime cobrando o mais barato possível.

Daí a Dennis Brean e Ary Barroso é um salto. Aquelas exaltações todas, itas chegando do norte, jangadas saindo com Chico, Ferreira e Gullar, Carmen Miranda se mandando para papéis secundários em filme de Don Ameche e Alice Faye, Jorge Amado no Partido Comunista e restaurantes com nomes feito Furna da Onça ou Gruta do Negro.

Bahia, nossa Sessões Passatempo: o folclore começa na hora em que você chega. Há uma teoria, muito interessante, por falar nisso, de que o Brasil todo, e tudo o que nele se passa, não é mais do que "encosto". Um "trabalho" feito em terreiro para só dar azar, dar tudo errado. Enquanto não descobrirem onde esse "trabalho" está enterrado, e em seu lugar colocarem um sapo morto, o Brasil não chegará ao Conselho de Segurança da ONU. Nem erradicará o dengue, a lepra, a febre aftosa ou a axé-music, ficando sempre nessa situação em que há tanto se encontra, sempre oscilando entre o trágico e o ridículo.

Nem tudo, no entanto, está perdido. Cae pegará seu Grammy, Gil conseguirá a nomeação, Glauber será estatueta em festival no Caribe.

Você ainda me pergunta se eu já fui à Bahia, cara? Estive em Salvador por três dias em 1958. Eu acompanhava o fotógrafo americano J.D. Barnell, que tinha o melhor emprego do mundo: viajava tirando fotografias para a capa do "Seleções do Readers´ Digest". Todas as edições em todas as línguas. Ia e deixava dois anos de capa. Na época, eu fazia umas traduções para "Seleções". Pagavam o melhor preço da praça. O dobro por página a traduzir. Então, eu, garotão, fui quase que literalmente do Oiapoque ao Chuí acompanhando o imbecilão do americano, como intérprete e relações públicas. Começamos em Santana do Livramento e fomos até Manaus. Uns dois ou três meses viajando. Única vez que eu passei perto do que é conhecer o Brasil. Foi bom. Mais não digo. A não ser lembrar que estou há 22 anos fora do dito cujo.

Mas sim. Salvador, 1958. Ficamos no hotel Nacional. Lembro de irmos fotografar tapeçaria de Gennaro de Carvalho, logo ali do lado. Lembro de ateliê de Mario Cravo no Rio Vermelho. E esse troço que você mencionou: minha Nossa Senhora, nunca vi tanto pobre em minha vida!. Mas pobre a seco, sem nada de pitoresco! Sem bandeja com guloseima na frente. Tinha era perna com elefantíase, chagas, moscas.

Fomos ao terreiro daquela senhora, a do Gantois. Lembro que uma mocinha, branquérrima (coisa rara na época), em pleno transe de pomba-gira, posava e flertava loucamente com o canalha do fotógrafo americano. Aliás, em todas as cidades em que estivemos, eu observei isso: as moças davam bola paca pro cara não pelo fato dele ser boa pinta (não era) ou cativante, mas apenas por ser americano. A americanice era seu charme. Isso passou, não passou não?

Salvador era um cheiro que eu sinto até agora. Era budum, dendê e miséria. Dos três, o mais pungente era o da miséria. Mas isso passou, não passou não? Sei que há um homem muito bom, de grande coração, personalidade fascinante, cabelos brancos finíssimos que são um convite à carícia, um homem chamado Antônio Carlos Magalhães, que vive com o único objetivo de salvar a Bahia. Seu único problema, já que ele tem o sapo, é contar com uma assessoria que lhe aponte aonde, afinal de contas, enterraram o maldito do "trabalho".

Saravá, olurum, banzo, nagô etc.



--------------- Mensagem Original ---------------

De: Mario Sergio
Para: Ivan Lessa
Data: Terça-feira, 12 de setembro de 2000
Assunto: Bahia com Agá