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Mario Sergio   São Paulo
Ivan Lessa   12/09/2000
Bahia com Agá


Moreno frajola,

encontro-me em Salvador e não ouvi ninguém dizendo "ó xente". Aliás, desde a primeira vez que aqui estive, há quase trinta anos, não lembro de ter escutado a referida expressão, assim como "cabra da peste", "cabeça chata" e outras do mesmo jaez, tão usadas por nós do Sul.

Da minha janela, em Ondina, descortina-se a Baía (ou será Bahia? Ou isso ainda é do tempo em que se escrevia baía com agá?) de Todos os Santos. O vento uiva e o mar brame. Ontem fui a pé até o Rio Vermelho e bati um acarajé com suco de cajá. Hoje, fui até o Porto da Barra, onde tracei outro acarajé, acompanhado de suco de cupuaçu. No café, mandei ver suco de umbú e tapioca. Para o almoço, cogito uma moqueca de siri mole e suco de cacau. Amanhã, vatapá, também conhecido como "la chose jaune", e graviola. Graças a todos os orixás, iansãs, oguns, oxalás, búzios, oxóssis e iemanjás, a comida em Salvador continua ótima. Sim, agora há lanchonetes, pizzarias, restaurantes italianos, japoneses e chineses. Mas as barraquinhas com os quitutes locais são maioria, e estão cheias de nativos. Não são macumba para turista.

Aqui e ali se vê o que não se deveria ver: um shopping center que poderia estar em Miami, e não na Pituba; morenas frajolas fazendo "cooper"; lojas de artesanato industrializado; uma cidade que cresceu em demasia. Mas no geral, parece, as coisas continuam como deveriam ser: malemolência, sestro, vagar, carurú, mungunzá. Até o futebol na praia continua o mesmo: os baianos são uns tremendos pernas de pau. Não acertam um passe, e a cada dois minutos interrompem o jogo para discutir.

Perto do Farol da Barra, vi uma faixa num hotel anunciando o XXVII Campeonato Brasileiro de Futebol de Mesa. Entrei para ver. Você não acredita. Eram três salões, 24 mesas oficiais e pelo menos cem jogadores. Dou um chute: a idade média deles era 40 anos, e o peso, 94 kilos. Regressão, dirá você, marmanjos que não conseguiram sair da infância. Bem provável. Mas atente: o futebol de botão é uma mania como outra qualquer. Requer talento, treino, estudo, disciplina, esforço, habilidade. Descobri que os jogadores, na maioria, eram baianos. Não deu para saber se eles jogam bem. Como o campeonato estava no começo, imperava a ruindade. Espero que você tenha pronta uma teoria que explique a predileção baiana pelo botão.

Deve ser acaso, mas talvez não seja: três das minhas últimas matérias foram sobre baianos. Um músico, um banqueiro e um político. Os baianos são porretas. Principalmente por serem bairristas. É raro eles elogiarem algo ou alguém não-baiano. Não dá para discordar muito deles. Ao menos quando se lembra das baleias em Abrolhos, do sertão que se contempla do alto de Monte Santo, da caatinga de Cansanção e Uauá, da capoeira na frente da igrejinha da praia do Forte, do mar do Curuípe, da água de côco em Itapoã, da micareta em Alagoinhas, das noites de lua cheia no Abaeté, da travessia para Itaparica, do São Francisco barrento à beira de Juazeiro, das rochas de Vitória da Conquista, das sacadas e sobrados da Ribeira.

Há duas coisas chatas na Bahia, contudo. A primeira, comum ao Brasil inteiro, é a pobreza. Ela continua do mesmo jeito. A outra é quando o baianismo se transforma em ideologia: cadinho de raças, nova civilização, tolerância sincrética, a velha lenga-lenga da carnavalização regada a dendê e candomblé. Tem também uma praga chamada axé-music, berrada nos alto-falantes nas janelas, nas barracas e nos carros velhos parados na beira-mar.

Você já foi à Bahia, Lessa? Não? Então vá.

Mario Sergio



--------------- Mensagem Original ---------------

De: Ivan Lessa
Para: Mario Sergio
Data: Domingo, 10 de setembro de 2000
Assunto: A paranóia da pedofilia