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Ivan Lessa   Londres
Mario Sergio   26/04/2001
Adeus


Mario Sergio,

sua carta foi como uma bofetada em minha cara. Tive que ler umas duas ou três vezes. Pensei que fosse gozação. Você se rindo de mim, fazendo de suas ironias. Não entendi nada. Visto que meu contrato, no meu entender, se estenderia até 26 de abril de 2002. Daí fui lá na papelada checar. Não é que deu zebra? Você estava e está certo. É hoje só, amanhã não tem mais. Acabou-se o que era doce. Finis coronat opus. Vai ser um baque financeiro para mim, rapaz. Ter que agüentar meus compromissos com menos 12 mil e 500 dólares por mês é dose para leão. Londres, segundo as mais recentes pesquisas, está quase pegando Tóquio, Kyoto e Lagos, na Nigéria, em matéria de cidade mais cara do mundo. Como eu sempre lhe disse, eu não queria ser turista aqui. Mesmo comprando na cadeia de supermercados Tesco, limitando os CDs, livros e refeições fora, vou ter que me virar para pagar as 36 prestações que ainda faltam da compra do flat. A sorte é que eu, como a proverbial (ou é fabulosa?) formiga da cigarra, fiz minhas poupancinhas e, apertando aqui e ali, dará -- bate na madeira, pé de pato mangalô treis veis -- para ir se vivendo. Aquele troço que a gente sabe: por pior que seja, ao menos não estou no Brasil.

Mas sua carta. Enxuta, séria, to the point, como de hábito. Sua carta é válida. Válida como naquela época (não sei se você pegou) em que, no vale-tudo da vida brasileira sob regime militar -- aliás a única hora em que nos comportamos razoavelmente --, tudo era válido, muito válido. O camarada estava muito doido, bicho? Era válido. A mocinha ali resolveu botar as aranhas para brigar com a outra mocinha acolá? Válido, válidas. A validez era uma espécie de marcação homem a homem, mulher a mulher. Acho que hoje há um certo exagero na estratégia adotada pelo sistema. Líberos demais. Ou um WM que muitos confundem com XYZ. Ninguém se entende. A crítica deve voltar a ser a crítica, tal como a Lapa voltou a ser a Lapa, segundo a marchinha gravada pelo Chico Viola, nos anos 40. Uma crítica deve se limitar a dizer se isso ou aquilo outro é válido ou não. Rubens Fonseca está curtindo uma de fezes? É válido ou não? O comentário político também deve seguir esse critério simples e direto. Foi válida a confissão do Arruda? Foi válido o discurso de ACM?. Isso simplifica muito a complicada vida no país do Biotônico Fontoura banido. Falar nisso: invalidem logo Monteiro Lobato, Jeca Tatu, Narizinho, Emília, a turma toda.

O que atrapalha tudo, como sempre, é leitor. Conforme você esteve quase, quase à beira de articular. Mencionou o tal do mural. Em princípio, você está certo. Sua crítica é válida. Eu dei uma chegada lá, em janeiro ou fevereiro, e logo me escafedi. Feito aqueles emails que a gente recebe e, pelo título, já sabe que só pode ser vírus, vai logo -- sorry -- "deletando". Deixei o mural para lá. E se aquilo pegasse no meu hard drive? Unh, unh, companheiro. O dinheirinho do UOL era bom, mas para aguentar essa gentinha iam ter que comparecer com um bocado mais de tutu.. Não lhe parece válida minha obtemperação?

Sim, sim, mas e o leitor? O que atrapalha tudo? Leitor de sítio, de livro, de jornal, para você que está nessa. Leitor é essa escória que a gente evita na rua. Ninguém escreve para leitor. Nem soneto nem óbice. A gente escreve para que gostem da gente. Para ser admirado. Tolstói escreveu "Guerra e Paz" para acharem que ele era formidável. Só que tem um troço: ele escreveu para uns dois ou três amigos igualmente barbudos. Ou Proust, que era mais dado, escreveu para -- com boa vontade -- uns seis cavalheiros de bigodinho. Quer dizer então que a gente deve escrever para uns seis amigões escolhidos com o dedo. Não, não há erro de, arram, digitação. É "escolhido com o dedo" mesmo. A proctologia não é uma ciência exata, li em algum lugar, mas deve ser exercida entre amigos do -- bem, vá lá que seja -- peito. Primeiro, para se ver se o companheiro já foi mordido por cobra e, segundo, conferir se ele agüenta o tranco.

Na verdade, não só no Brasil, como também no resto do mundo, o que se precisa mesmo é menos leitores e mais escritores. Não digo muito mais escritores. Uns dois ou três por país bastariam. Também não é todo país que precisa de escritores. A República dos Camarões não precisa de escritores. O Iraque não precisa de escritores. A França, a Inglaterra, os Estados Unidos, o Brasil, esses precisam dos tais dois ou três bons sacanas. Não que seja muito, muito importante. Apenas para manter em ordem o resto da turma. Mostrar que eles nasceram para leitores e nunca serão outra coisa na vida a não ser leitores. É como um sargento berrando ordens e impondo disciplina, para usar de um paralelo muito ao nosso gosto.

Ah, sim. Estou há séculos para lhe dizer. Acabou o estoque de amendoim japonês (tanto o marrom quanto o branco) que você trouxe com tanto carinho. O "Elefante", do Francisco Alvim, está lá na sala, paradão, olhando para mim e eu olhando para ele, cada um de nós aguardando a hora de….


--------------- Mensagem Original ---------------

De: Mario Sergio
Para: Ivan Lessa
Data: Terça-feira, 24 de Abril de 2001
Assunto: Adeus