charl™ of course


DAKO

Charlô, por ele mesmo

Créditos

meu amigo


charlô quem diria, foi menino de fazenda até os cinco anos. Uma de suas primeiras lembranças é a de ter comido uma cebolinha verde arrancada da horta recém-regada. O cheiro subiu-lhe ao nariz e ele nunca mais se esqueceu.

Achava ótimo brincar no cafezal, andar de carona no trator. Acompanhava a lavagem e a secagem do café espalhado no terreiro. Pulava por cima, comia o grão e ganhava do avô um centavo por saca de café derrubada e um centavo por litro de leite ordenhado. E havia laranjas, jabuticabas, macarrão feito em casa, a massa esticada na mesa cheia de farinha. Muita coisa para sedimentar as lembranças de uma infância feliz. Os piqueniques de charrete, com uma única cesta, daquelas lindíssimas, de palha, com pratos e talheres. Como os primos e irmãos eram muitos, o piquenique acontecia em etapas. Iam de quatro em quatro e a espera era uma angústia total, o medo de que chovesse ou anoitecesse antes de chegar a sua vez.

Além dos cheiros e gostos da fazenda ele se lembra do pai indo a Mato Grosso pescar e caçar. Trazia codornas e perdizes. Uma vez trouxe 116 perdizes, sabem lá o que é isso? Meses de escabeche de perdiz, perdiz cozida no leite, ao molho pardo, assada com mel com torradinhas à volta. E, como se não bastasse, era preciso comer os miúdos das galinhas e outras aves que haviam papado com tanta alegria em almoços e jantares. Eram seis irmãos, mas haja fígado, haja moela! A irmandade perdia amigos por causa das vísceras. Quem entrasse na casa tinha que se conformar com a disciplina e comer tudo. Salve-se quem puder, miúdos, não.

Na época do abacate o pai abria a fruta ao meio, punha açúcar, molhava com vinho do Porto e polvilhava com castanha-do-pará ralada. Os primos ingleses se assustaram. Abacate com açúcar? O pai não deixou por menos: à noite, salada de abacate para que as crianças aprendessem os costumes dos ingleses.
Na fazenda morava também a avó, na toca da vó Albertina, como diziam, e de lá saíam biscoitos, doces, gostosuras que ela deixava que levassem para a eterna brincadeira de "venda", onde amealhavam uns níqueis. Estaria aí nascendo o futuro e bem-sucedido comerciante Charlô?

Quando a família se mudou para São Paulo, Charlô foi direto para o Elvira Brandão, falando à moda caipira e fazendo rir os colegas. "Sai da frente que lá vem a boiada pra riba de nóis!" A avenida 9 de Julho era o "estradão iluminado". A vida no colégio parecia mais complicada que a da escolinha da fazenda. Bem mais complicada. Na hora do lanche aparecia um servente com um caldeirão de salsichas, um balaio de pão e a mostarda. O dinheiro que ele e a irmã Maribel ganhavam só dava para o pão e a mostarda, sem salsicha. Chegavam em casa chorando miséria e ninguém ligava, davam risada. O remédio era levar de casa uma maçã, pão com manteiga da fazenda e um Toddy que às vezes talhava. Tudo que vinha da fazenda era em quantidade e tinha que ser consumido. Nem pensar em pedir um suco de laranja no clube. "Que idéia, menino! Lá em casa está assim de laranja e limão..."
A tia Nena fez um pavê e explicou direitinho para a irmã. Quando a mãe foi pegar o menino na escola, a professora estava encantada com a receita ditada por ele. Fofoqueiro, pensou a mãe. É que já ia se formando o Charlô comunicador, que sabe transmitir uma receita como ninguém, com naturalidade e simplicidade. Quanta gente, muito mais tarde, recortava da Folha aos domingos todas as suas matérias...

A vida de apartamento na cidade tinha alguns encantos que a roça não tinha. Por exemplo, um casal espanhol de cozinheiro e copeira, Jerônimo e Natividade. No aniversário da mãe, Jerônimo fez uma maionese em formato de relógio que marcava exatamente a hora em que aterrissara na mesa. Foi o máximo do chique para o menino Charlô.

Os pais continuavam atentos à educação gastronômica dos filhos. O passeio preferido era o Viking's. Aquela mesa enorme de salmão, arenque, steak tartar! O restaurante Freddy's em datas muito especiais e o Chamonix quase sempre. Danna Kawa com sua harmônica cantando junto com o pai na noite esfumaçada de cigarros, fondues e lampiões. Nascia o festeiro.

Foi crescendo, bom de boca. A mãe fazia cursos de culinária e ele adorava as novidades que apareciam à mesa. Massa folhada, galinha ao curry, sorvetes, bombons. É até hoje um formigão incorrigível... Tanto no seu fast food como no restaurante aparecem os bolos de nozes recheados de baba-de-moça, as tortas desabando sob as claras em neve, os merengues, os doces de ovos, desavergonhadamente doces.

Cozinhar, que era bom, nada.

Entrou no Colégio Santa Cruz, estudava direitinho, mas ainda não se arriscava a transformar ingredientes. Para os fins de semana na praia, pão, presunto, salada e pronto. Uma vez saiu de férias com uma amiga portuguesa (ele tem um monte de amigas portuguesas) e ela, no caminho, comprou uma galinha crua. Crua, pois, pois? Ao chegar à praia, a menina, prática, introduziu um tablete de caldo no rabo da galinha, ou no cuzinho, como dizem os portugueses, e uma cebola pelo pescoço. Do forno saiu uma galinha como aquelas da fazenda, cheirosa e dourada. Daí em diante, tablete no rabo, cebola goela abaixo, a cozinha não era um bicho-de-sete-cabeças, afinal.

Ia ficando cada vez mais curioso com respeito à comida. Na casa dos amigos destampava as panelas, comia, perguntava. Copiava sem plagiar. Todo ser criativo copia tudo e transforma no que quer.De repente, na faculdade, viu-se às voltas com a famosa crise não-é-bem-isso- que-eu-quero. O pai e a mãe deram força e ele foi ver se descobria o que fazer em Londres, Paris e Roma. Em Londres foi ficando naquela vida de lavar prato em restaurante, dar brilho em vidraça, servir mesas.
Depois, Paris. Lá, chegou e já foi herdando um emprego do irmão Zé. Cozinhava para duas senhoras, mãe e filha. Madame Cécile Valléry Radot, de 80 anos, e Mademoiselle Nicole, de 56, diretora da Marie Claire.

Era bico. Ele fazia entrecôtes, salades, pommes e riz e até um pato gratinado, com molho branco. Tinha que chegar às onze em ponto, explicaram. "Pour le manteau." "Pour le manteau?" É. Mme Cécile Radot, nos seus 80 anos tinha problemas em vestir o mantô, daqueles roxos, bem antiguinhos. O cabelo também era roxo, para combinar com o mantô. E Charlô tinha que estar lá às onze horas para ajudá-la. Bico, bico. De sobremesa, queijos, frutas e torta de maçã paresseuse. Maçã picada, uma farofinha fina e manteiga, açúcar por cima e forno.

As duas comiam no hall do apartamento porque os objetos de suas vidas passadas, livros, quinquilharias, louças, atulhavam a sala de jantar. Nem dava para arrumar e sobrava tempo. Charlô copiou um patê de um dos cadernos velhos de Mme Rado­ um patê de foie de volaille.

O tempo foi passando, chegavam cartas e mais cartas, os telefonemas aumentavam, a novidade de morar fora foi se desgastando, a saudade bateu e acabou voltando, deixando Mme Radot às voltas com seu mantô.

"O que é que você vai fazer, Charlô? A Marília Braga abriu um restaurante, por que não abre um também? Por que não vende seus patês?" Vender como? Onde? Quem haveria de comprar?

Os pais esperavam outra vez com inteligência e equilíbrio, talvez um pouco ansiosos, a decisão do filho. Foi a mãe que não resistiu e deu o empurrão final. Numa tarde paulista, muito azul, saiu para uma reunião do padre Aquino. Voltou com um pedido de três quilos de patê. As primeiras clientes: Lucinha Vidigal e Tereza Coutinho Nogueira. Correria total. Empacotaram o patê de Mme Radot nas quentinhas e saíram de Opala para a entrega.

Estava pronto o Charlô. Tão pronto que ninguém mais o segurou. Foi uma das primeiras pessoas, aqui, a perceber a comida como uma possibilidade de se divertir, de trabalhar e de criar um grande estilo. A fama de menino rico que brincava de trabalhar nunca o atrapalhou. Ao contrário. Charlô é um gênio de marketing. Se não fosse o que é, daria um ótimo publicitário. Sabe exatamente qual o gancho que vai dar notícia, nunca se engana. Aparece nas colunas sociais como quem não quer nada, mas está é trabalhando. Vai a todas as festas e se diverte à grande... trabalhando. Viaja e capta novas tendências, trabalhando.

Usa a comida e seu preparo como modo de expressão pessoal. Sua generosidade coexiste com sua habilidade inata de anfitrião. Sabe mandar, sabe comer, tem intuição para descobrir talentos no seu métier. Recebe com naturalidade cordial, sem ansiedades de autocrítica, com cara de que também gosta de seu bistrô, de seu buffet, da comida de sua casa... segredo para relaxar e relaxar também o convidado. Exerce continuamente sua boa educação. Um prato extra que manda para o amigo no restaurante, um doce que faz chegar à casa do jornalista que o elogiou, uma taça de champanhe para a artista que o prestigia... Um dia eu me sentei ao lado de Carolina Ferraz, na hora do almoço. Ela olhava sua porção generosa com olhos de modelo e gemia para a amiga. "E se o Charlô perceber que deixei um pouco no prato?"

Cada um gosta dele por um motivo ou outro. Eu tenho cá os meus, e o principal mesmo é perceber que nada no mundo é capaz de fazer do Charlô um novo-rico. Mas que alívio! Nada o torna nouveau. Não é uma graça dos céus? Conviver com alguém, principalmente nesta profissão, que enxerga além do dinheiro, sem preconceitos, distraído, descobrindo o "de dentro" das pessoas... é bom.

A comida, atualmente, se distancia tanto de sua história, dos seus lugares, de seus rituais, justamente do que a faz importante. Mas não para o Charlô, para ele, não. Fico encantada com sua consciência de passado e de família, o respeito às raízes, a todos que vieram antes. Preserva memórias, parentes e nomes, sem embalsamá-los, cheio de vida nova, olhando para a frente. São os cadernos antigos e as amigas portuguesas que ditam os doces brasileiros. É a fazenda onde brincou que o faz gostar de bolo de fubá e comer com gosto a goiabada cascão que a vizinha lhe mandou. É a memória das estações, da vida em família, dos tios, dos irmãos. Não perde as referências.

Renova um clã unido na grife Charlô, que é dele, mas é de todos também. Clã brasileiríssimo, e é essa brasilidade que ele repassa em competência no seu buffet, no restaurante e no trato fino com que cerca amigos e clientes, clientes e amigos, mais ou menos a mesma coisa.

INDEX