É
desconfortável ver um filho, pouco interessado nas artes do volante,
ingressar numa autoescola — ou Centro de Formação de Condutores, o
nome pomposo que lhes deram. É como se uma vaca pudesse ver seu
boizinho, gordinho, na fila do frigorífico. Neste preâmbulo o uso do
"pouco interessado" não é gratuito: serve para direcionar a ideia (ou
ao menos gostaria que assim fosse...) a alguém que não quer saber de
carros, mas vai ter que se render a pressão da sociedade mundial que
brada: "Como assim, não quer guiar? Vai, sim, todo mundo guia!"
Casa de ferreiro, espeto de pau, é um provérbio adequado a minha casa,
pois, mesmo exposta a todo tipo de carro e moto desde a mais tenra
idade, minha caríssima filha Nina, em seus 20 anos, boceja e faz ar
blasé quando questionada: e aí, você não vai tirar carta?
Querer ela não quer. Quero dizer, agora parece que quer, mas não
muito. Já se passaram dois anos do "turning point", os tão esperados
18 anos de idade que franqueiam volantes de todo tipo aos brasileiros
e brasileiras, e ela talvez tenha percebido que seu tempo de enrolação
já deu o que tinha que dar e disse ok, agora eu vou. Já eu contei os
segundos que faltaram para a chegada de meus 18 alforriantes anos
desde quando entrei num carro e saí dirigindo, às escondidas, com 12
ou 13. Sabia tudo sobre como surrupiar chaves enquanto meus pais
dormiam em modorrentos fins de semana e, em cinco ou dez minutos de
acelerador no fundo, descontava a sede de volante.
Eu era um perigo. Aliás, "era"?
Nina nunca foi assim, nunca se interessou pelo lado prático da
condução de veículos. Em geral mulheres são menos ansiosas para ter
carro ou ao menos ganhar certo acesso a eles. Contudo, Nina é ZERO
como as Cocas de hoje em dia. Percebo, até para me garantir certa
tranquilidade, que ela não é algo de raro atualmente. Fator
geracional? Talvez. Um fato: o carro, hoje, exerce um fascínio
diferente sobre a juventude do que exercia no passado ou, corrigindo,
não vejo tantos maníacos como eu e meus amigos atualmente. Para nós o
tema principal, único e exclusivo de 200% dos assuntos eram motores.
Mas, deformações específicas de uma tribo à parte, volto ao começo, às
autoescolas.
Moro num bairro calmo, ruas tranquilas cercadas por grandes avenidas.
Basta olhar pela janela da frente de casa, durante uma manhã qualquer,
e contar uma dezena de carros de autoescola circulando em seu típico
passinho de procissão, com o instrutor invariavelmente largadão no
banco ao lado, cara de sono e/ou de pouca paciência, tendo a coté
alguém que segura o volante como eu seguraria os chifres de um bode,
ou seja, sem saber bem o que fazer com ele. Uma centena de metros
adiante de casa, uma praça se presta ao exercício "X" da academia
verde-amarela do volante, a baliza. Dois discos de embreagem foram
cimentados ao asfalto e neles os instrutores espetam cabos de vassoura
que guardam estrategicamente no matinho ao lado. E dá-lhe baliza!
Sabemos todos que a autoescola aqui no Brasil não ensina a dirigir um
automóvel, mas sim, e quando muito, a cumprir o rito do exame prático
que determina quem está apto ou não a conquistar sua CNH. Rito
viciado, por sinal, onde os critérios são nebulosos e no qual a
específica habilidade de cada concorrente é menos importante do que
sua capacidade de realizar o que o examinador exige. E o que ele
exige? Infelizmente, e na maioria das vezes, propina.
Ok, processem-me!
Não tenho provas do que digo. Tenho "apenas" 50 anos e desde que me
interesso pelo assunto, há quase 40, que ouço dizer que para passar é
só pagar. E isso não é prova. É "ouvi dizer".
Eu mesmo não passei na primeira vez, "culpado" — segundo o examinador
— de ter saído na ladeira sem usar o freio de mão, fazendo um "punta-tacco"
e arremessando o Fusca à frente sem nem um milímetro de recuo. E
assim, não pode. Tem que usar o freio de mão, não habilidade... Fui
besta e exibidinho, confesso, e paguei o preço. Não do suborno, mas da
remarcação do exame e da espera por nova data onde, como um coió de
argola, conduzi o Fusca como se fosse um anacéfalo. Mas cumprindo o
rito. |
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Oportunidade perdida
E falando em anacéfalo, um desses que se elegem, votados por pares
também desprovidos de material cinzento do bom, teve a grande ideia de
tornar obrigatórias aulas de autoescola noturnas. Tal representante do
povo, que doravante chamaremos simplesmente de "Alce", raciocinou que
será muito útil à formação dos novos motoristas algumas aulas ao
volante com os faróis ligados já que, "segundo estatísticas", a maior
parte dos acidentes ocorre com motoristas de 18 a 29 anos de idade à
noite ou de madrugada.
"Alce" deverá cedo ou tarde ser mais um a povoar o inferno, partindo
da premissa de que tal local está cheio de almas penadas bem
intencionadas. Mas sofrerá por lá, um pouco por ser isso que se prevê
para um mau "Alce", mas muitíssimo mais por conta do pensamento obtuso
e simplista, o que lhe garantirá pouca simpatia e privilégios do
demônio, que gosta — sabemos! — de almas e alces mais espertos, claro.
Ao instalar mais esse penduricalho inútil parido pela mente de "Alce",
o Denatran perde mais uma chance de colocar alguma ordem no barraco
feio e mal ajambrado que é o sistema de formação de motoristas
brasileiro. A garotada — contemporâneos e contemporâneas de Nina — se
mata nas ruas e estradas à noite mais do que de dia? Claro. Ocorre a
alguém pensar que quem está na rua à noite está indo a ou voltando da
balada, e que nesse caso não é a falta de treinamento em direção
noturna que salvaria a pátria e algumas vidas, mas sim uma severidade
bem aplicada da tão festejada (e já enterrada) lei seca, onde aquela
sanha de bafômetros que faria a alegria de taxistas (e pais...)
madrugadas adentro não passou de um oba-oba midiático sem
continuidade?
Abordemos outro ângulo: o que é mais importante para um motorista
novato, estar habituado a conduzir sob luz artificial, seja da rua ou
dos faróis, ou saber frear? Alguém sabe de algum instrutor que ensine
como frear de maneira emergencial, tipo desviando daquele cabo de
vassoura espetado no disco de embreagem, só que com um bonezinho (ou
um parzinho de chifres) em cima, imitando um pedestre sonso (ou um
alce)?
As autoescolas possivelmente estão felizes com a nova exigência de
aulas noturnas, pois acrescentarão algumas horas pagas regiamente ao
carnê de seus vencimentos. Salvo uma ou outra manifestação,
proveniente de instrutores insatisfeitos por ver sua carga horária
rotineira migrar para o horário da novela, não soube de nenhuma
autoescola que se posicionasse contra a novidade. E se acaso a
novidade fosse "teste de frenagem de emergência a 60 km/h com desvio
de trajetória", uma versão bem mais fácil do notório teste do alce
(olá, você por aqui!)? Para quem não conhece o teste, feito em países
nórdicos com os últimos lançamentos do mercado, veículos — e não
condutores — são avaliados executando uma manobra específica onde se
simula ou desvio de um animal de grande porte (o alce...) e, assim, se
qualifica (ou não...) a maneabilidade e estabilidade de um carro.
Imaginem a gritaria dos donos de autoescola! Onde realizar o teste?
Quem pagará o desgaste de pneus e do carro? E o risco para o
instrutor, quem assume? Seria longa a lista de reclamações.
Como se vê, eu sofro por Nina e pares, gente que terá que aturar, como
eu e você, um "esquemão" para "jogar o jogo" e ter a tal CNH. E sem
nenhum tipo de instrução que faça deles motoristas mais habilidosos e
capazes de controlar um veículo numa situação de emergência.
A sorte é que, eventualmente, inábeis que são, poderão passar em cima
do Alce... |
A
garotada se mata nas ruas e estradas à noite mais do que de dia?
Claro. Ocorre a alguém pensar que quem está na rua à noite está indo a
ou voltando da balada? |