Obtenção
da minha carteira de motorista. Essa é uma história que merece ser
compartilhada com o leitor porque, antes de mais nada, tem tudo a ver,
até com o nome da coluna. Tirar carteira é o sonho de muitos e muitas
jovens, independente de geração ou de país. É um símbolo de liberdade
como poucos.
Naquele tempo não era obrigatório fazer curso de direção para prestar
exame. Pressupunha-se, e era verdadeiro e aceito, que cada um podia
aprender a dirigir da maneira que quisesse — o que para muitos
significava tomar aulas do pai, da mãe, de um parente ou de um amigo.
Meu aprendizado foi com um tio que está hoje com 83 anos. O mesmo
sucedeu com meu irmão.
Em geral, meu tio e minha tia iam jantar lá em casa e depois saíamos
para a "aula", os dois irmãos no
Citroën 11 ano 1947 dele. Às vezes meu pai ia junto com minha mãe. O
"curso" começou na virada de 1952/1953, portanto eu recém havia
completado 10 anos. Meu irmão é dois anos mais velho e por isso não
precisava de almofada no banco, equipamento que eu não podia nem pensar
em prescindir. Assim mesmo, mal dava para eu olhar por cima do grande
volante do Citroën.
Uma coisa notável nesse tio era sua enorme paciência para ensinar e bem
pouca para os erros. Isso, tenho certeza, foi fundamental para minha
formação de motorista, pois cedo tive noção de disciplina ao dirigir e
de que aquilo tudo era uma coisa muito séria. Nada de brincadeiras. Anos
mais tarde, ao aprender a pilotar avião, tive um instrutor com esse
mesmo perfil. Hábil, paciente, porém muito exigente. Posso dizer que
tive sorte nos dois casos pela qualidade e pelo rigor da instrução.
A adolescência foi passando e, quando eu tinha 16 anos, meu irmão tirou
carteira. Como somos parecidos, cansei de usar a carteira dele para o
caso de ser parado por um guarda. Só aconteceu uma vez de eu ter de
mostrar os documentos e a carteira do mano cumpriu seu papel com louvor.
O guarda nem desconfiou.
No dia seguinte ao do aniversário de 18 anos dei entrada no processo de
habilitação. Levou uns 20 dias para eu ser chamado para o exame escrito.
Caíam na prova sinalização e regras de circulação e não tive dificuldade
para responder tudo corretamente. Como eu já dirigia e tinha muito
interesse no assunto, havia decorado as regras e placas. Foi então
marcado o exame prático.
Data e hora (8h da manhã) marcados, lá estava eu no local do exame, que
era perto do Estádio Mário Filho, mais conhecido por Maracanã.
Evidentemente eu não poderia aparecer lá dirigindo nosso
DKW-Vemag e fui com um amigo
que morava na mesma rua. O carro mais usado pelas auto-escolas era o
Jeep Willys e havia lá grande
número deles, sendo o DKW praticamente exceção.
Ao me apresentar para o exame, surpresa: era necessário estar de
gravata. Não acreditei. Sem gravata, nada feito, disse-me quem parecia
ser o chefe do pedaço. Mas logo, dentro do estilo bem carioca, apontou
com a cabeça para um sujeito que estava por ali e logo vi: ele alugava
gravatas. Tudo muito bem armado. Precisei alugar uma gravata velha e
sebosa. Coisa mais ridícula!
Chegou a hora de entrar no carro e, nova surpresa: era proibido, no
exame, usar o espelho retrovisor, inclusive o interno. E a
terceira surpresa (lembre-se o leitor que não tive nenhuma aula em
auto-escola), era proibido usar a seta. Sinais, só de braço. Lembro-me
que me senti muito mal diante de tudo aquilo: mal engravatado (não era
camisa para gravata), sem usar espelho e tendo de fazer os vários sinais
com o braço. Antes de arrancar com o carro, olhar para trás. Não era o
dirigir que eu conhecia. E fiquei mesmo preocupado em ser reprovado,
apesar de já dirigir normalmente fazia tempo.
Pontos perdidos
O exame até que foi bem fácil — mais primário, impossível. Alguém
havia me dado uma dica: dirigir o mais duro e tenso possível, para não
deixar o examinador notar que eu já dirigia há muito tempo, que já
dominava inteiramente a técnica. Isso gerava uma predisposição a
reprovar o candidato, por pura implicância, dizia-se.
Fui lá eu então fazendo movimentos de robô — aliás, chamados de
autômatos naqueles anos em que computadores eram conhecidos por
"cérebros eletrônicos". O gesto de eu olhar para trás, duro, virando o
tronco, como se minha juntas estivessem travadas, foi digno de ser
filmado.
O percurso foi nas imediações do estádio de futebol e nele havia um
pequeno "S", com total visão nos dois sentidos. Acostumado a andar
rápido há muitos anos, automaticamente cortei um pouco o "S" (como
sempre faço até hoje). Ao terminar o exame, o examinador me aprovou, mas
disse que eu havia passado raspando por "ter perdido o controle do
veículo na curva". Na hora não atinei como poderia ter perdido o
controle do carro andando tão devagar (como são feitos os exames até
hoje) e, ao lhe perguntar o que havia acontecido, a explicação: eu havia
perdido o controle do carro no tal "S".
Foi naquele 17 de dezembro de 1960 que tive a primeira noção de como
nosso sistema de exame é falho. Só mais tarde essa mesma avaliação
chegaria ao tema auto-escola.
Imediatamente, ainda no carro, o examinador me deu o "papagaio", uma
papeleta que me permitia sair dali dirigindo (hoje não é mais assim; a
licença, que é provisória, só sai depois de alguns dias e enquanto isso
a pessoa não pode dirigir). E devolvi a gravata à "locadora". O
pagamento havia sido antecipado.
Aquele dia foi o ápice de um longo período de espera e apreensão. Agora
eu podia dirigir onde quisesse, sem receio de ser flagrado por um
guarda. A sensação de prazer misturada com felicidade é inesquecível.
Era o início da segunda fase como motorista, a de aprender mais e
acumular experiência. Uma fase que não tem dia para acabar. Iniciada 47
anos atrás.
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